segunda-feira, 3 de julho de 2017

O descaso pela defesa

Defesa nacional é problema em todo o mundo, em versões que dependem das circunstâncias de cada país e da inserção do país na sua região e no mundo. Não vai bem no Brasil: cultivamos um senso difuso de imunidade às – e de desinteresse pelas – turbulências mundo afora e dedicamos pouca ou nenhuma atenção à defesa.
Além de coerente com nossa propensão ao desapreço pelo que transcende o dia a dia, essa frivolidade é estimulada pela ausência de ameaça clássica e pelo não envolvimento do Brasil em guerra que afetasse sensivelmente a sociedade, desde a Guerra do Paraguai. No mundo político, também porque o assunto não tem apelo eleitoral. E o passado autoritário ainda induz em segmentos intelectuais e das artes alguma relutância por assunto que exija participação militar relevante. É a essa insensibilidade cultural que me refiro como o descaso (político e societário) pela defesa.
Manifestações emblemáticas do descaso: a ideia generalizada de que defesa é assunto de competência essencialmente (ou até exclusivamente) militar – um equívoco grave, porque em qualquer país a responsabilidade pela defesa se estende a todos os setores da vida nacional; e a tendência a confundir defesa nacional com segurança pública, com o Exército nas ruas e favelas do Rio de Janeiro como rotina, e não apenas em situações excepcionais. O clima de insegurança pública que vivemos explica ser visto com simpatia “o Exército nas ruas”, mas a confusão entre defesa nacional e segurança pública deveria preocupar quem tem condições para – e/ou deve – pensar o futuro do País e do País no mundo.
Uma terceira manifestação, influente no preparo das Forças Armadas: o desinteresse das elites e, é claro, do povo (este até compreensível) pelas atribulações do confronto entre a verdade fiscal e os recursos para a defesa. Confronto que se estende no mundo por todo o espectro das responsabilidades do poder público e, no tocante à defesa, até em países onde ela é preocupação protagônica. Vale a pena desenvolver o tema, que reflete a extravasão da apatia da sociedade civil ao cenário institucional.
O Brasil está inserido nessa realidade: países democráticos, em desenvolvimento dependente de investimentos públicos vultosos e com alta carga social são compulsados à parcimônia na defesa. Dispêndio elevado, sem riqueza compatível e com povo mal atendido, só com totalitarismo (Coreia do Norte) ou sob ameaça que exija o sacrifício. Nosso preparo militar deve, portanto, ser conduzido responsavelmente nos limites das possibilidades fiscais. Mas é também sensato e até imperativo não abdicar irresponsavelmente à indiferença política e societária.Em países política e socialmente bem estruturados o Congresso, a burocracia pública e instituições de estudos políticos e estratégicos manifestam interesse pelo que fundamenta os projetos do Ministério da Defesa (das Forças) e pelo significado do não atendimento das pretensões orçamentárias que os atenderiam. No Brasil esse assunto tramita insensível à lógica que baliza o preparo militar. Nossas Comissões de Política Externa e Defesa do Congresso analisam, sancionam ou criticam o mérito objetivo dos projetos do Ministério da Defesa e das Forças? No sentido inverso: ao esboçarem seus projetos, o Ministério da Defesa e as Forças consideram as perspectivas e os cuidados políticos relacionados com a defesa? Conviria que os considerassem, mas para isso seria necessário que fossem expressos... E a mídia não ajuda: aborda questões como aposentadoria e previdência dos militares e os militares na ordem interna, mas o mérito estratégico do preparo das Forças é ignorado.
A solução do dilema “necessidades criteriosamente ponderadas x possibilidades realistas” seria facilitada se Executivo e Congresso compartilhassem os fundamentos de uma visão comum sobre preocupações de segurança, atuais e projetadas no futuro. Melhor ainda se opiniões expressivas do pensamento brasileiro as endossassem. Ter-se-ia assim um esboço de balizamento nacional para a política de defesa e para seus complementos – a definição de prioridades e a adequação possível do orçamento da Defesa. Isso não vem tendo trânsito tranquilo e nossas elites (no caso, em realce a política) nem sequer se dão conta dessa lacuna. Muito menos o povo.
O Brasil está vivendo restrições inerentes à economia em crise e a defesa nacional não poderia ser exceção. Isso é importante, mas não é tudo. Não haverá solução consistente e à altura do potencial brasileiro sem a redução – o ideal seria o fim – do descaso cultural pela defesa, banalizada pela presunção abstrata de que estamos imunes às atribulações do mundo integrado e complicado e de que nosso problema se limita à segurança e à ordem internas. Não existe no mundo país democrático onde essa questão tenha sido bem resolvida sem o apoio consensual político e da sociedade.
Concepções culturais não mudam de um dia pra o outro e a resistência à mudança é maior quando se trata de concepção que corresponde ao ânimo social despreocupado com o maior prazo e/ou ao desinteresse do povo despreparado para o trato do maior prazo e de assuntos complexos. Por seu lado, nossas lideranças políticas não aparentam pretender uma mudança para melhor. Nelas já é rotina tradicional a desatenção à defesa e mais ainda na convulsão dramática que estamos vivendo. A prioridade nacional hoje é dar solução ao nosso trágico imbróglio político e econômico, mas a revisão ponderada, sem arroubos de euforia irrealista, do descaso pela defesa precisa ao menos começar, se quisermos acrescentar alguma dimensão político-estratégica às nossas dimensões geográfica, econômica e demográfica. O credenciamento à participação na ordem do século 21 será mais incisivo – e com ele à condição insistentemente aventada, de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Fonte: Estadão
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