Em um mundo repleto de conflitos e crises humanitárias, as missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) assumem um papel cada vez mais crítico. Em meio a esse cenário desafiador, o Quick Reaction Force (QRF) do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil se destaca como uma força pronta para agir em situações extremas, sendo a única tropa brasileira a atingir o nível 3 de certificação da ONU.
A terceira e a quarta edição do exercício de avaliação final das capacidades do Corpo de Fuzileiros Navais (CFN) da Marinha do Brasil (MB) inseridas no United Nations Peacekeeping Capability readiness System (UNPCRS), a Quick Reaction Force e a Explosive Ordnance Disposal Company (EOD Coy), ocorreram em São José da Barra (MG), entre os dias 15 e 20 de outubro, e em Itaóca (ES), entre 28 de novembro e 05 de dezembro. São José da Barra e Itaóca se tornaram temporariamente parte das províncias de Leppko e Guthar, do fictício país denominado Carana.
Nós do GBN Defense estivemos presentes, e vamos compartilhar um pouco desse importante exercício, que leva nossa tropa expedicionária a imersão em um cenário fictício, mas bem próximo do real, que envolve, inclusive, a comunidade local e organizações não governamentais, como a Cruz Vermelha Brasileira.
Vamos Conhecer Carana?
Antes de prosseguirmos, é importante que você leitor conheça Carana e sua origem, para que possa desembarcar conosco nessa desafiadora missão e ter a dimensão dos desafios que o QRF e a EOD Coy se depararam durante os exercícios.
Carana é um país fictício, presente em um material desenvolvido para treinar civis, policiais e militares que pretendem se preparar para Operações de Paz. O Cenário de Treinamento Carana foi originalmente desenvolvido em 2002-2003 pelo Departamento de Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas (UN DPKO), hoje Departamento de Operações de Paz (DPO). Em 2008, o Centro de Manutenção da Paz Pearson (PPC) foi contratado pela EURORECAMP para desenvolver um Pacote de Cenários Básicos mais abrangente com base no “Cenário de Treinamento Carana”. A exigência foi identificada para uma versão expandida do Estudo do País de Carana; perfis adicionais para os estados vizinhos; mais detalhes sobre questões e dinâmicas internacionais; e um pacote de mapeamento abrangente incluindo mapeamento topográfico e regional.
Tomando por base o “Cenário de Treinamento Carana”, material que projeta cenários que os participantes devem refletir, decidir e planejar, o Centro de Operações de Paz e Humanitário de Caráter Naval e o Comando da Força de Fuzileiros Navais, desenvolveram um ambiente ficcional que trás Carana ao mundo físico, bem próximo da realidade das missões em que os fuzileiros navais poderão vir a participar : o Ambiente Carana.
O Ambiente Carana é constantemente atualizado e reflete a complexidade de diversas nações reais, onde etnias coexistem, e a paz é frequentemente ameaçada por conflitos históricos e disputas pelo poder. No coração de Carana, encontra-se a regiões de Leppko e Guthar, palcos das operações da QRF e da EOD Coy. As tensões sociais em Carana são alimentadas por uma história de repressão e marginalização de certos grupos étnicos, que buscam recuperar seu status após anos de opressão. O país é caracterizado por uma diversidade cultural rica, mas, ao mesmo tempo, por um terreno político instável, onde as rivalidades antigas frequentemente eclodem em violência.
A geografia de Carana também desempenha um papel crucial na dinâmica do conflito. Com paisagens que vão de densas florestas, planícies litorâneas a montanhas abruptas, oferece tanto beleza quanto desafios operacionais. Os fuzileiros navais precisam navegar por essas condições adversas, muitas vezes enfrentando não apenas as forças rebeldes, mas também o terreno traiçoeiro e as mudanças climáticas. Essa complexidade geográfica exige uma adaptabilidade constante, onde cada missão pode se transformar rapidamente em uma luta pela sobrevivência.
O ambiente sócio-político é marcado por desconfiança generalizada, exacerbada pela influência de atores externos, como Estados, empresas internacionais e grupos armados privados. Os fuzileiros navais, embora venham com a intenção de ajudar, enfrentam a resistência da população, que muitas vezes vê a presença da ONU como uma nova forma de colonialismo. Nesse contexto, a construção de confiança torna-se um objetivo essencial. A experiência em Leppko e Ghutar destaca como as operações de paz exigem a construção de relacionamentos significativos com as comunidades locais, e o trabalho coordenado com os atores humanitários, pertencentes a agências da ONU e a ONGs, que já se encontravam no terreno antes da chegada da missão de paz e precisam ter seu espaço de atuação respeitado.
O Exercício
Os exercício em São José da Barra e Itaóca foram especialmente desafiadores, pois não se tratava apenas de um exercício militar, mas de uma verdadeira imersão numa fictícia missão de paz, onde foram recriadas, o mais próximo possível da realidade, o cenário encontrado em situações de emprego real da tropa neste tipo de missão. Os fuzileiros enfrentaram a necessidade de equilibrar suas funções como combatentes e seus papéis como facilitadores de paz. Essa dualidade é crucial em um ambiente onde a confiança da população civil é vital para o sucesso da missão. Durante a operação, o QRF e EOD Coy foram chamadas a tomar decisões difíceis, que muitas vezes exigiam uma análise crítica das consequências de suas ações.
A diversidade dentro da QRF e do EOD Coy também merece destaque. Estas duas edições do exercício de avaliação final das capacidades trouxe a participação inédita das primeiras mulheres formadas como soldados fuzileiros navais. A inclusão dessas mulheres não apenas enriqueceu a força, mas também foi um passo significativo para a igualdade de gênero nas forças armadas, aspecto que as Nações Unidas têm dado atenção e relevância. As fuzileiros navais mostraram-se essenciais em interações com a comunidade local, especialmente em negociações e em esforços para obter informações.
As mulheres trouxeram também uma nova perspectiva para as operações. Em situações de conflito, onde as emoções e as tensões estão à flor da pele, a habilidade de ouvir e entender as preocupações da comunidade tornou-se um diferencial crucial. As mulheres participaram ativamente das atividades, onde suas contribuições foram valorizadas, demonstrando que a inclusão de mulheres na força não é apenas uma questão de justiça social, mas uma estratégia operacional inteligente.
A Interação com a Comunidade Humanitária
Durante os exercícios, a coordenação com os atores humanitários tornou-se uma prioridade no cenário proposto. Os fuzileiros sabiam que, para garantir a segurança dos membros da comunidade humanitária em Leppko e Guthar, era vital manter um canal aberto de comunicação. Após relatos de ataques a comboios de ajuda humanitária, os fuzileiros navais implementaram escoltas e patrulhas, assegurando que as doações chegassem a quem mais precisava. Essa colaboração foi crucial, pois muitos grupos humanitários estavam na linha de frente, oferecendo assistência vital em um momento de crise.
A coordenação com as ONGs e agências também trouxe um conhecimento local valioso. As organizações humanitárias, muitas vezes compostas por indivíduos que conhecem bem a cultura e as nuances da comunidade, forneceram insights que ajudaram os fuzileiros navais a desenvolver estratégias mais eficazes. Juntos, os fuzileiros e os representantes humanitários podem identificar áreas de necessidade imediata, promovendo não apenas a segurança, mas também a dignidade e o bem-estar dos civis afetados pelo conflito.
Cenários de Conflito
A realidade em Leppko e Guthar era tensa e complexa. Os fuzileiros se viram no meio de um campo minado de desinformação e hostilidade. Grupos rebeldes, aproveitando a insatisfação popular, usavam fake news para alimentar a revolta contra as forças da ONU. As notícias falsas se tornaram uma arma poderosa, distorcendo a percepção pública e deslegitimando as operações de paz. As forças da ONU enfrentaram não apenas a resistência armada, mas também a batalha pela narrativa, onde a confiança da população civil era crucial para o sucesso da missão.
A situação piorou com a visita da fictícia embaixadora da UNICEF, a pop-star Martina Camacho. Sua falta de sensibilidade cultural gerou um clamor popular que acendeu a violência nas ruas. Em um momento de tensão, a figura de uma celebridade pode ser uma faca de dois gumes. Embora sua intenção fosse trazer atenção para a causa humanitária, sua visita precipitou uma crise, exacerbando as tensões entre os grupos rebeldes e as forças da ONU. Essa situação ilustra como um pequeno deslize pode ter repercussões devastadoras em um ambiente de conflito.
À medida que a operação avançava, a situação se tornava cada vez mais crítica. Confrontos armados e emboscadas contra os fuzileiros tornaram-se comuns. O que começou como uma missão de paz evoluiu para um intenso conflito, com os soldados marinheiros sendo chamados a agir em situações que desafiavam seus limites. Os fuzileiros, firmes em sua missão, não hesitaram em defender os inocentes, mesmo sob intenso fogo.
Desafios e Negociações
A habilidade de negociar tornou-se uma arma poderosa para os líderes na ação. Em um ambiente onde a desconfiança pairava no ar, os fuzileiros navais se destacaram, não apenas por sua formação militar, mas também por suas capacidades interpessoais e de mediação. Em um cenário de conflito, as palavras muitas vezes têm tanto peso quanto as armas, e saber se comunicar efetivamente pode fazer a diferença entre a paz e a escalada da violência.
As negociações com os grupos dissidentes exigem uma combinação de firmeza e sensibilidade. A QRF e o EOD Coy se viram em posições delicadas, onde era crucial entender as motivações dos rebeldes e as queixas da população local. Para isso, os fuzileiros navais buscaram estabelecer um diálogo que permitisse identificar pontos comuns e reduzir as tensões. Essas conversas não eram simples, pois frequentemente os rebeldes chegavam com desconfiança, e qualquer passo em falso poderia fazer com que o processo de paz desmoronasse.
Um dos principais obstáculos nas negociações foi a influência de grupos extremistas, que, como um braço armado de uma etnia marginalizada, ou representando interesses de outros estados, não apenas lutava por reconhecimento político, mas também usava a narrativa de vitimização para mobilizar apoio popular e minar os esforços da comunidade internacional de estabilizar Carana. Compreender a história e as experiências do grupo dissidente é um ponto vital para a construção de uma ponte que possa levar a um diálogo frutífero ou o desenvolvimento de respostas corretas as suas ações.
A Crise e a Resiliência do QRF
Com o avanço da operação, a situação se deteriorou rapidamente. O que começou como uma missão de apoio e proteção tornou-se uma luta por sobrevivência. As emboscadas contra as patrulhas do QRF aumentaram, e a segurança dos soldados estava em risco. A QRF teve que adaptar suas táticas, intensificando a vigilância e aumentando as patrulhas em áreas críticas.
As operações noturnas se tornaram uma necessidade, pois muitos dos ataques ocorreram sob a cobertura da escuridão. A resiliência do QRF foi testada em várias ocasiões. Por fim, a situação em Leppko e Guthar alcançou um ponto crítico, onde confrontos armados em várias localidades se tornaram inevitáveis. A pressão aumentou sobre o QRF, que enfrentava ataques coordenados contra suas instalações e a base de operações temporárias (TOB).
A terceira edição do adestramento no cenário "Carana" não foi apenas um exercício militar; foi uma imersão em um ambiente de complexidade sociopolítica e cultural. As lições aprendidas nessa operação refletem a importância de um modelo de missão que vai além da presença militar. O QRF provou que, em cenários de paz, é necessário um equilíbrio entre segurança, respeito à cultura local e envolvimento comunitário.
À medida que a operação avançou para sua próxima fase, ocorrendo agora em dezembro, os fuzileiros carregam consigo as experiências e as histórias que moldaram o ambiente do exercício anterior.
Em um mundo onde a paz é frequentemente ameaçada, a missão dos Peacekeepers, como os fuzileiros que compõe a QRF e a EOD Coy, nos lembra que por trás de cada uniforme, há seres humanos dedicados a fazer a diferença. O caminho à frente será repleto de desafios, mas a determinação em buscar a paz e a segurança para todos continua a ser a força motriz que guia esses bravos soldados marinheiros.
E eu não poderia deixar de parabenizar a todos envolvidos neste exercício, que demanda uma verdadeira imersão e o talento dos militares que atuam como figurativos, criando um nível de realidade fundamental para o exercício e preparo da Tropa, e um Bravo-Zulu a equipe de coordenação que enfrenta um grande desafio de criar todos os desafios e cenários que envolvem uma operação de paz.
Por Angelo Nicolaci - Jornalista/Editor, graduando em Relações Internacionais pela UCAM, especialista em geopolítica do oriente médio, leste europeu e América Latina, especialista em assuntos de defesa e segurança.
Colaboração Especial e Agradecimento - Prof. Ricardo Antônio Cazumba - Doutorando no PPGEST-INEST- UFF, Mestre em Estudos Estratégicos pela INEST-UFF, Licenciado e Bacharel em História pela USU, Oficial da Reserva do Corpo de Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, com basta experiência em missões de paz na égide das Nações Unidas (MINUSTAH 2004 e 2015, MINURCAT 2008 e 2008), expertise em coordenação civil-militar ONU, CIMIC OTAN e Assuntos Civis. Lecionou na ESG "Segurança e Defesa", no Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia, no Curso Superior de Inteligência Estratégica, no Curso de Mobilização e Logística e no Curso de Estado-Maior Conjunto.
Bem vindo a bordo Comte Cazumba!
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