O Brasil, ao longo do século XX, construiu um programa nuclear de ponta, com capacidade tecnológica que, em muitos aspectos, rivaliza com países que possuem armas nucleares. No entanto, o país optou por um caminho de obediência internacional, priorizando tratados e diplomacia em detrimento da soberania estratégica. Esse paradoxo, entre potencial técnico e limitação política, define a narrativa nuclear brasileira, revelando a tensão entre capacidade e escolha, entre poder e prudência.
O interesse do Brasil pela energia nuclear começou na década de 1940, com estudos científicos e o envio de pesquisadores ao exterior. Durante o governo de Juscelino Kubitschek, o país assinou acordos com os Estados Unidos e a Alemanha Ocidental para desenvolver reatores nucleares civis e tecnologia de urânio, estabelecendo a base para a autonomia tecnológica que se consolidaria nas décadas seguintes. Esses passos iniciais foram fundamentais para criar uma infraestrutura científica e industrial que mais tarde permitiria ao país trilhar caminhos estratégicos mais ousados.
Nos anos 1970, sob o regime militar, o programa nuclear ganhou impulso estratégico e técnico. Entre 1975 e 1988, o Brasil:
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Desenvolveu tecnologias próprias de enriquecimento de urânio por via ultracentrifugação;
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Criou as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e investiu em mineração de urânio em Poços de Caldas e Lagoa Real;
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Estabeleceu parcerias internacionais, incluindo com a Alemanha, visando à construção de usinas civis (Angra 1 e 2) e à capacitação industrial.
Embora nunca tenha declarado intenções militares, o programa brasileiro era tecnicamente e estrategicamente capaz de avançar em qualquer direção, criando o que especialistas chamam de capacidade latente de dissuasão. Como observa o físico e especialista em política nuclear José Goldemberg: “O Brasil tinha, nos anos 1980, tecnologia para produzir armas nucleares se decidisse. A opção foi política, não técnica.”
Atualmente, o Brasil possui:
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Ciclo completo de urânio: mineração, conversão, enriquecimento e fabricação de combustível nuclear;
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Reatores civis avançados, incluindo Angra 1 e 2, e pesquisa em reatores compactos de propulsão naval;
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PROSUB, o Programa de Desenvolvimento de Submarinos Nucleares, que integra engenharia nuclear e tecnologia de propulsão embarcada, uma capacidade rara no hemisfério sul;
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Capacidade latente de armamento nuclear, estimada em 4 a 6 anos, caso haja decisão política de militarização.
Essa infraestrutura coloca o Brasil em posição singular: tecnicamente apto, mas politicamente limitado. Ao aderir a tratados como o Tratado de Não Proliferação Nuclear e cooperar com a Agência Internacional de Energia Atômica, o país optou por priorizar aceitação internacional sobre soberania plena, garantindo prestígio, mas limitando sua liberdade de ação estratégica.

O contraste com outros países é evidente. Israel mantém arsenal não declarado e aposta na ambiguidade estratégica e na dissuasão. A Coreia do Norte desenvolve armas nucleares como instrumento de barganha e sobrevivência. O Irã mantém um programa civil com capacidade latente de militarização, utilizando a ambiguidade como ferramenta política. Enquanto esses países usam o nuclear como instrumento direto de poder e influência, o Brasil limita sua autonomia estratégica em nome da diplomacia e da boa vontade externa. Surge, assim, um paradoxo inquietante: tecnologia de ponta e submissão política coexistindo no mesmo território. A pergunta que se impõe é inevitável: o Brasil será eternamente um espectador obediente no cenário nuclear global, ou está pronto para converter sua capacidade latente em soberania real?
Nos últimos vinte anos, a proliferação nuclear global consolidou-se como fator central de poder e dissuasão. Estados Unidos, Rússia, China, Índia, Paquistão, França, Reino Unido e Coreia do Norte fortaleceram seus arsenais, enquanto o Irã avançou sob supervisão internacional rigorosa. O Brasil, apesar de possuir tecnologia, recursos estratégicos e know-how industrial, permaneceu relativamente estático, refém de escolhas políticas que priorizam conforto diplomático sobre autonomia estratégica.
Especialistas brasileiros em defesa e geopolítica destacam que o atraso nuclear do país não é apenas técnico, mas sobretudo político e institucional. Um professor de Relações Internacionais aponta que o Brasil poderia ter se tornado uma potência nuclear regional, mas decisões históricas, limitações externas e temor interno o mantiveram na posição de observador. O país detém tecnologia avançada, incluindo ciclo completo de urânio e domínio sobre o PROSUB e submarinos nucleares, mas permanece limitado por barreiras políticas e pela percepção de risco internacional, um verdadeiro tubarão sem dentes, admirado, mas sem impacto estratégico concreto.
O dilema central é provocativo: o Brasil abriu mão de sua autonomia estratégica para evitar conflitos diplomáticos ou sanções econômicas? E mais: o que ganhamos, em um mundo onde países que desafiaram potências consolidadas conseguiram afirmar influência regional e global?
Comparativo internacional: poder, dissuasão e escolha
Coreia do Norte: Pyongyang ilustra como o nuclear pode ser usado como ferramenta de sobrevivência e barganha. Desde os anos 1990, desenvolve armas nucleares e mísseis balísticos intercontinentais, cada teste calculado para enviar sinais à comunidade internacional e, principalmente, aos Estados Unidos. O SIPRI observa: “A Coreia do Norte desenvolveu sistematicamente armas nucleares para dissuadir ameaças percebidas.” Cada demonstração é política, estratégica e psicológica, mesmo sendo pequena e isolada, a Coreia do Norte projeta poder real de negociação.

Irã: Mantém programa civil com capacidade latente de militarização. A ambiguidade estratégica permite negociar sanções, consolidar influência regional e manter atenção global. A Agência Internacional de Energia Atômica confirma: “O Irã desenvolveu tecnologia nuclear que, embora civil, poderia ser adaptada para fins militares, se desejado.” Comparado ao Brasil, o Irã explora o silêncio estratégico como arma, enquanto o país opta pela visibilidade normativa.
Israel: Não assina o Tratado de Não Proliferação Nuclear e mantém arsenal não declarado. A lógica é clara: a incerteza estratégica é sua maior arma. O Instituto Nacional de Segurança de Israel afirma: “O país construiu poder regional confiável por meio da ambiguidade estratégica e da superioridade tecnológica.” Segredo e tecnologia garantem dissuasão, influência regional e liberdade de ação, uma lição sobre como não falar pode ser mais estratégico do que obedecer.
Brasil: o gigante que escolheu não jogar. Possuímos tecnologia de ponta, ciclo completo de urânio, capacidade de produção de combustível e o PROSUB, mas seguimos optando pela obediência normativa. Como disse Celso Amorim: “O Brasil defende um mundo sem armas nucleares, e seu papel internacional é promover a paz.” Nossa escolha nos posiciona como gigante técnico, politicamente subordinado, capaz de se afirmar, mas preferindo obedecer.
O dilema brasileiro: ética, poder e soberania
O Brasil possui todas as peças para atuar estrategicamente no cenário nuclear global, mas escolhe não jogar. A limitação não é tecnológica: é política. Entre os fatores que restringem nossa ação estão: o Tratado de Não Proliferação Nuclear e outros tratados internacionais, a fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica, pressão de potências globais, custos financeiros e sociais da militarização e debates internos sobre ética, imagem internacional e responsabilidade estratégica. Cada escolha de obediência fortalece nossa reputação pacifista, mas reduz poder de influência real. O país poderia ser protagonista regional, mas prefere seguir regras alheias. O dilema é claro: dissuasão regional versus aceitação internacional. Militarizar implicaria assumir autonomia e barganha estratégica, mas com riscos políticos e econômicos elevados. Permanecer obediente mantém prestígio, mas limita nossa capacidade de decisão.
O Brasil caminha, assim, entre ética, poder e soberania. Cada decisão sobre o programa nuclear define se continuaremos espectadores do jogo global ou se acordaremos e assumiremos protagonismo estratégico, projetando todo o poder que já possuímos.
Cenários futuros: protagonismo ou obediência
O futuro do Brasil no tabuleiro nuclear é uma história de escolhas. Submarinos nucleares, ciclo completo de urânio, centros de pesquisa e indústria estratégica — tudo pronto. Mas seguimos obedientes, pacifistas e normativos.
O caminho atual garante prestígio, credibilidade internacional, investimentos e parcerias, mas limita influência e dissuasão. Dissuasão latente e ambiguidade estratégica aumentariam autonomia regional e capacidade de influência silenciosa, exigindo habilidade diplomática para equilibrar poder e percepção externa. A militarização total transformaria o Brasil em protagonista global, capaz de influenciar decisões estratégicas internacionais, mas com custo político e econômico elevado, incluindo risco de sanções e isolamento. Em todos os cenários, o dilema é ético e estratégico. O Brasil tem as peças do xadrez nuclear, mas escolhe não jogá-las. Cada decisão molda não apenas a dissuasão, mas também papel e legado internacional.
O Brasil vive um paradoxo que poucas nações conhecem: tecnologia, conhecimento e capacidade industrial para se afirmar como potência nuclear, mas escolha deliberada de pacifismo e obediência. É um gigante admirado, mas adormecido, refém da própria ética normativa, enquanto outros atores usam o nuclear como moeda de poder e barganha. A grande provocação permanece: até quando continuaremos a obedecer ao jogo global, limitando nosso próprio potencial? Até quando aceitaremos ser espectadores da geopolítica? O gigante brasileiro poderia acordar, exercer todo o poder que já possui e se tornar referência em autonomia estratégica, ou permanecer admirado por sua disciplina, mas impotente para afirmar soberania plena quando o cenário exigir. O mundo observa, e o tempo não espera.
por Angelo Nicolaci
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