A América do Sul enfrenta uma metamorfose silenciosa e brutal: o narcoterrorismo deixou de ser um fenômeno marginal para se tornar um sistema de poder continental, uma engrenagem transnacional que avança como um câncer, infiltrando instituições, capturando economias locais e corroendo a própria ideia de soberania. No epicentro dessa tempestade está o Brasil, não como vítima passiva, mas como plataforma logística e operacional de cerca de 80% da cocaína que circula no Cone Sul, consolidando-se como corredor estratégico para o crime organizado global.
Nesse cenário, facções como PCC e Comando Vermelho já não são meros grupos criminosos: evoluíram para dinastias do crime, com estruturas empresariais, braços internacionais, centros de comando em múltiplos países e faturamento anual na casa dos bilhões. Controlam portos, comunidades, redes financeiras clandestinas e, sobretudo, territórios invisíveis onde o Estado só pisa de farda e blindado, e mesmo assim, sob fogo cerrado.
O ano de 2025 escancarou essa realidade de forma incontornável. A megaoperação no Rio de Janeiro, que resultou na morte de 117 narcoterroristas, marcou mais do que um ponto fora da curva: revelou uma guerra aberta, já em estágio avançado, entre Estado e facções que operam como exércitos paralelos. Nas vielas estreitas, nas serras densas e nos corredores logísticos da capital fluminense, ficou claro que o país enfrenta um inimigo que combina poder militar, capilaridade social e inteligência operacional de nível estratégico.
Nesse vácuo de segurança, o debate político se inflamou. O Projeto de Lei nº 1283/2025, que busca classificar facções como entidades terroristas, surge como tentativa de enquadrar legalmente organizações que já atuam como tais há anos. A proposta endurece penas, amplia mecanismos de exceção e, sobretudo, abre caminho para novas camadas de cooperação internacional, inclusive com os Estados Unidos, que pressionam silenciosamente para inserir o Brasil em uma arquitetura hemisférica de combate ao crime transnacional.
Se aprovado, o PL pode redefinir o tabuleiro político e jurídico do país, mas também traz riscos: ao transformar facções em organizações terroristas no papel, o Brasil se aproxima de um modelo de enfrentamento semelhante ao usado no Oriente Médio, onde a linha entre segurança e soberania muitas vezes se torna tênue sob a sombra da influência americana.
Fronteiras: Portas Abertas ao Caos
Os 16.900 km de fronteiras brasileiras já não funcionam como limites, mas como amplas portas abertas por onde fluem drogas, armas, ouro ilegal e grupos armados que desafiam o Estado brasileiro. Na região amazônica, onde a presença governamental é rarefeita, a linha divisória entre Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia e Venezuela dissolve-se na prática: o crime se move sem obstáculos, enquanto as instituições públicas se arrastam com lentidão burocrática e capacidade operacional insuficiente.
Nesse espaço sem dono, dissidências das FARC e do ELN estabeleceram alianças funcionais com facções brasileiras como PCC e Comando Vermelho. O resultado é uma malha criminal integrada, na qual cada grupo cumpre um papel específico: as antigas guerrilhas fornecem conhecimento territorial, proteção armada e acesso à produção andina; as facções brasileiras garantem logística, transporte, lavagem financeira e acesso aos portos. A Amazônia torna-se, assim, o epicentro de uma economia ilícita profundamente sofisticada, responsável por movimentar bilhões e abastecer mercados internacionais.

Estima-se que até 40% da cocaína que circula no mundo utilize, em alguma etapa, rota amazônica. Dos rios peruanos ao Rio Solimões, do Alto Orinoco às pistas clandestinas de Roraima e Amazonas, voadeiras, cargueiros e aeronaves de pequeno porte operam em ciclos constantes e precisos. O destino final raramente é o consumo interno: a maior parte segue para a Europa, África Ocidental e Oriente Médio, onde redes mafiosas estrangeiras (Ndrangheta, Camorra, cartéis balcânicos, grupos nigerianos) já atuam em parceria direta com facções brasileiras.
Nos portos de Santos, Paranaguá, Itaguaí e Suape, essa internacionalização do crime encontra sua expressão mais visível. Os contêineres carregados com cocaína não são obra improvisada: são operações complexas, envolvendo corrupção institucional, infiltração em terminais e logística de alto nível. Paralelamente, organizações estrangeiras instaladas no Brasil financiam parte da cadeia e garantem a recepção da droga no exterior. Santos, por exemplo, tornou-se um dos principais hubs de cocaína do planeta, disputado por máfias europeias, que veem no Brasil uma plataforma de baixo risco e alta oferta.
A devastação avança especialmente sobre territórios indígenas, como a Terra Yanomami, transformada em frente de saque ambiental e humano. O garimpo ilegal, hoje dominado por facções e milícias, movimenta cerca de 3 bilhões de dólares por ano. Pistas clandestinas, acampamentos armados, balsas ilegais e depósitos de combustível formam uma estrutura que suplanta a presença estatal. Em áreas inteiras, o poder real não é exercido por Brasília, mas por grupos armados que impõem regras próprias, cobram taxas e distribuem “serviços” à população local. Trata-se de uma ocupação paralela.

Esse caos é agravado pela falência da cooperação fronteiriça sul-americana. Programas como SIVAM, UNASUL-Segurança e mecanismos bilaterais de vigilância se tornaram esvaziados ou inoperantes. Países vizinhos, cada qual enfrentando suas próprias crises internas, Venezuela em colapso político, Peru dominado por rotas aéreas clandestinas, Bolívia sob influência crescente de cartéis estrangeiros, Colômbia em disputa entre governo e dissidências armadas, não oferecem respostas coordenadas. O crime, ao contrário dos Estados, não conhece fronteiras nem burocracia.
O Brasil, que deveria liderar a política de segurança na região, permanece preso a disputas ideológicas internas, oscilando entre operações grandiosas e ausência total de continuidade estratégica. A fronteira amazônica segue não ocupada: há batalhões sem meios, bases sem efetivo, reservas indígenas sem proteção, rios sem fiscalização. A presença estatal é episódica, quando deveria ser permanente. Não existe um projeto nacional para integrar a Amazônia, reocupar áreas críticas e desmontar o poder econômico das facções.
O resultado é que o Brasil não apenas sofre o impacto da criminalidade transnacional, ele a facilita e, de certa forma, a fomenta pela omissão prolongada. Em vez de ser o polo de estabilidade da América do Sul, o país tornou-se o principal corredor e distribuidor do tráfico internacional, condição que alimenta violência urbana, corrupção institucional e avanço de grupos paramilitares sobre a economia formal.
O caos nas fronteiras não é um problema periférico: é o núcleo da crise de segurança brasileira. Enquanto o Estado não retomar o controle territorial, o crime continuará ditando as regras, na selva, nos portos, nas cidades e, cada vez mais, na política.
O papel das Forças Armadas e seus limites estruturais
Diante da expansão do narcoterrorismo, da captura territorial nas fronteiras e da presença crescente de grupos armados transnacionais, as Forças Armadas brasileiras acabaram convertidas na última barreira de contenção do Estado. Contudo, essa presença, ainda que imprescindível, revela limitações profundas, resultado de décadas de negligência política, falta de investimentos estruturantes e ausência de planejamento estratégico continuado.
O problema começa na própria base material. A Aeronáutica sofre com um déficit crônico de aeronaves de patrulha, interdição aérea e ataque leve, essenciais para interceptar voos clandestinos e apoiar ações em áreas remotas. O Exército opera blindados, viaturas e sistemas concebidos para outros cenários, pouco adaptados ao ambiente amazônico, onde mobilidade fluvial e leveza operacional deveriam ser prioridades absolutas. A Marinha, responsável por patrulhar rios equivalentes a mares interiores, enfrenta dificuldades logísticas massivas, com navios antigos, lanchas insuficientes e meios de vigilância incapazes de cobrir a vastidão dos 23 mil quilômetros de rios navegáveis da Amazônia.

A limitação mais grave, porém, está na estagnação tecnológica. O Brasil fala há anos em desenvolver e empregar sistemas de drones, mas os programas não avançam com a velocidade necessária. Enquanto facções criminosas utilizam drones comerciais e táticos com capacidade de vigilância, transporte de cargas ilícitas e monitoramento de operações policiais, o Estado ainda debate assinaturas orçamentárias ou empurra cronogramas indefinidamente. O resultado é um abismo tecnológico que amplia a vantagem operacional do crime e dificulta o monitoramento contínuo de áreas críticas.
Essa fragilidade se agrava pela completa ausência de previsibilidade orçamentária. As Forças Armadas convivem com contingenciamentos sucessivos, verbas que variam ano a ano e projetos estratégicos interrompidos ou paralisados. Não há planejamento plurianual estável para equipar unidades de fronteira, renovar sensores, adquirir embarcações, integrar satélites, comprar drones, atualizar radares ou expandir a presença operacional nos pontos mais vulneráveis. Sem orçamento previsível, qualquer estratégia vira improviso; qualquer avanço vira exceção; e qualquer operação depende do humor fiscal do governo da vez.

No terreno, as consequências são visíveis. Muitas guarnições operam isoladas, com sensoriamento limitado, comunicações instáveis e infraestrutura básica precária. Enquanto isso, facções criminosas circulam com barcos de alta potência, motores importados, rádios criptografados, drones de longo alcance e cadeias logísticas mais eficientes que a do próprio Estado brasileiro. Em diversas regiões, criminosos dispõem de mobilidade e informação superiores às do aparato oficial, tornando as operações militares meras ações reativas, sempre atrasadas um passo.
Esse cenário revela o que se tornou um vício institucional: o uso das Forças Armadas como ferramenta de “enxugar gelo”. Operações como Ágata, Escudo e as ações constantes em Tefé, Tabatinga, Pacaraima e São Gabriel da Cachoeira evidenciam tanto o comprometimento dos militares quanto a realidade incontornável de que não existe controle efetivo de áreas do tamanho de países inteiros sem tecnologia avançada, continuidade de políticas públicas e uma arquitetura de coordenação permanente.
Mas o Brasil insiste em mobilizar as Forças como solução emergencial, entra governo, sai governo, repete-se a fórmula, sem construir mecanismos duradouros de integração entre Exército, Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal, Abin, polícias estaduais e órgãos de fiscalização ambiental. Em vez de uma estratégia nacional articulada, o país opera em “picos de esforço”, o oposto do que o crime organizado faz: planejamento, continuidade e expansão.
A militarização sem modernização, sem inteligência integrada e sem meios tecnológicos de ponta transforma o combate em um jogo assimétrico. O Estado reage; o crime se antecipa. O Estado improvisa; o crime investe. O Estado age por operações pontuais; o crime atua todos os dias, 24 horas, em rede. Sem romper esse ciclo, o Brasil continuará perdendo terreno, não por falta de coragem ou competência de seus militares, mas por falta de visão estratégica, investimento estável e a coragem política de enfrentar o problema como ele realmente é: uma ameaça nacional de longo prazo, que exige Estado, e não remendos.
A infiltração política e o risco de governança capturada
Nenhuma rede criminosa de grande escala se mantém de pé sem algum nível de proteção política, omissão estratégica ou cálculo ideológico. Na América do Sul, isso se tornou um fator de desestabilização regional. A leniência, quando não cumplicidade indireta, de governos inteiros abriu espaço para que o narcoterrorismo encontrasse terreno fértil.
A Colômbia, sob Gustavo Petro, tornou-se o caso mais emblemático: o desmonte de operações contra dissidências das FARC, o afrouxamento da pressão estatal sobre áreas produtoras e o discurso ambíguo sobre narcotráfico permitiram que grupos armados recuperassem territórios perdidos. Áreas antes pacificadas voltaram a ser governadas por insurgentes e narcomilícias, transformando a fronteira colombiana em um manancial de instabilidade exportada aos vizinhos.
Na Venezuela, o regime de Nicolás Maduro estimula um ambiente onde grupos como ELN, dissidências das FARC operam com autonomia quase estatal. O Arco Mineiro tornou-se uma das maiores zonas de extração ilegal do mundo, financiando máquinas de guerra paralelas sob o olhar complacente, e às vezes interessado do próprio governo. Essa permissividade converteu a Venezuela em um santuário criminal de alcance continental.
O Brasil, por sua vez, paga a conta de sua própria volatilidade política. A comemoração dentro de presídios após a eleição de Lula, amplamente relatada por agentes penitenciários, não foi mero folclore: refletiu a expectativa das facções por um ambiente menos assertivo no combate ao crime organizado. A substituição de políticas de enfrentamento por discursos de “diálogo”, somada à ausência de um plano nacional consistente, fortaleceu organizações que operam como verdadeiros conglomerados de poder.
Somado a isso, decisões controversas do STF, muitas vezes percebidas como politizadas, desconectadas da realidade das ruas e até incompatíveis com a gravidade do cenário, criaram insegurança jurídica. Suspensões de operações, flexibilização de instrumentos de ação policial e interferência administrativa em temas de segurança pública produziram um efeito dominó: o Estado se fragmenta, enquanto o crime se adapta rapidamente às brechas.
Nas franjas do território, o quadro é ainda mais alarmante. Diversos municípios da faixa de fronteira tornaram-se dependentes economicamente da economia ilícita. Prefeituras, câmaras municipais e empresas contratadas por governos locais passaram a sofrer influência direta de facções que financiam campanhas, intimidam adversários, controlam contratos e ditam prioridades políticas. Em muitas regiões, o crime deixou de ser apenas um ator clandestino: tornou-se parte integrante da governança.
Essa infiltração não se limita à Amazônia. Ela avança sobre o Centro-Oeste, aproveitando-se do agronegócio e das rotas para Bolívia e Paraguai; infiltra-se no Nordeste por meio do controle de portos e do comércio informal; atinge o Sudeste, onde facções disputam, e muitas vezes dominam, cadeias logísticas de exportação. A criminalidade organizada já opera como um complexo econômico, com ramificações em mineração, extração de madeira, combustíveis, criptomoedas e contrabando de tecnologia.
Enquanto isso, o debate nacional sobre segurança pública é capturado por agendas partidárias, ideologização vazia e disputas institucionais. O país vê-se preso entre discursos superficiais de um lado e omissão deliberada do outro. O resultado é trágico: não há políticas de Estado, apenas ciclos curtos de improvisação. E enquanto Brasília se perde em disputas internas, o crime avança de forma disciplinada, calculada e conectada globalmente.
O risco que emerge é claro: a governança capturada. Quando facções influenciam eleições, quando governos são lenientes por escolha ou convicção ideológica, quando tribunais bloqueiam instrumentos de enfrentamento e quando a incompetência política se soma à fragmentação institucional, o Estado deixa de ser soberano. Passa a conviver e às vezes a depender de estruturas criminosas que preenchem o vazio deixado pelo poder formal.
O narcoterrorismo como questão geopolítica
O avanço do narcoterrorismo no Brasil não ocorre em um vácuo: ele se insere em uma disputa silenciosa entre potências que enxergam a América do Sul como área de influência estratégica. A Amazônia, os corredores marítimos do Atlântico Sul e os polos energéticos brasileiros se tornaram ambientes onde crime organizado, interesses estatais e agendas internacionais se entrelaçam.
Hoje, os grandes cartéis transnacionais integram redes que cruzam três continentes, conectando dissidências colombianas, facções brasileiras, intermediários africanos e distribuidores europeus. Para países da OTAN, isso cria uma vulnerabilidade sistêmica: o Brasil, pela sua posição geográfica, tornou-se nó essencial na arquitetura global de segurança. Não é à toa que Washington, Bruxelas e até Londres classificam o território brasileiro como área de alto risco logístico, com impacto direto sobre o comércio e sobre operações militares na costa atlântica.

Mas há um fator ainda mais sensível: a competição entre grandes potências pela Amazônia. Enquanto o Ocidente pressiona por maior controle territorial e investimentos em segurança, China e Rússia vêm ampliando sua presença diplomática e tecnológica na região, oferecendo cooperação, equipamentos e facilidades financeiras. Essa disputa transforma o combate ao narcotráfico em ferramenta geopolítica. Cada potência tenta moldar a política brasileira conforme seus interesses estratégicos, seja por meio de acordos de defesa, condicionantes ambientais, protocolos comerciais ou acordos de rastreabilidade.
Nesse contexto, o narcoterrorismo passa a ser usado como justificativa para ingerência externa. Documentos circulam nos bastidores diplomáticos com propostas de monitoramento multilateral, patrulhas combinadas e instalação de sensores internacionais em áreas críticas. Em termos práticos, são iniciativas que reduzem a autonomia do Brasil sobre seu próprio território. Não se trata de invasão militar, mas de erosão gradual da soberania por via regulatória, tecnológica e operacional.
A fragilidade brasileira também afeta sua capacidade de barganha. Países que não conseguem controlar suas rotas internas de ilícitos tornam-se mais vulneráveis a pressões em negociações comerciais, ambientais e de defesa. E, enquanto as potências tratam o crime organizado como questão estratégica, o Brasil ainda o discute como problema policial, o que cria um descompasso que diminui o peso do país nas mesas onde realmente se define o futuro da segurança hemisférica.
A consequência é clara: ou o Brasil estrutura uma estratégia geopolítica própria para enfrentar o narcoterrorismo e proteger áreas de interesse vital, ou continuará reagindo às agendas impostas de fora, perdendo capacidade de decisão no momento em que mais precisaria afirmá-la.
Facções: Corporações do Terror
O Brasil convive hoje com organizações criminosas que deixaram há muito de ser “facções” no sentido tradicional. PCC e Comando Vermelho tornaram-se corporações transnacionais do crime, com estrutura, escala e poder equivalentes aos maiores cartéis do planeta. Não são grupos marginais: são entidades paramilitares com capacidade de projeção internacional, influência política e controle territorial crescente.
O PCC, com cerca de 30 mil integrantes, domina boa parte do Paraguai, controla rotas na Bolívia e opera hubs na Europa, especialmente Espanha, Holanda e Bélgica. O Comando Vermelho consolidou alianças com cartéis mexicanos e expandiu sua presença na Amazônia, usando rios, comunidades ribeirinhas e aldeias vulneráveis como corredores estratégicos. As duas facções operam sistemas de inteligência próprios, logística multinacional, lavagem de dinheiro via criptomoedas, empresas de fachada, transportadoras, postos de combustível e até fundos financeiros.
Entre 2020 e 2024, movimentaram juntas cerca de R$ 52 bilhões, valor suficiente para financiar campanhas eleitorais, corromper cadeias inteiras do Estado e manter armamentos que rivalizam com forças de segurança. E o mais alarmante: essas estruturas já interferem no ambiente político, intimidam candidatos, compram autoridades locais e moldam eleições em regiões estratégicas. O crime não disputa o poder; ele já participa dele.
Impacto Econômico do PCC
O PCC funciona hoje como um conglomerado econômico clandestino com capacidade de gerar distorções profundas na economia brasileira. Seu modelo de negócios já supera o narcotráfico em lucratividade e complexidade: fraudes em combustíveis movimentam US$ 11,3 bilhões por ano; redes de fintechs e investimentos lavam capital em escala industrial; empresas de fachada ocultam patrimônio estimado em dezenas de bilhões. Só entre 2020 e 2024, o grupo movimentou R$ 52 bilhões, parte deles geridos dentro de fundos que chegaram a exibir ativos de R$ 30 bilhões em um único banco.
O efeito em cadeia é devastador. O Estado perde bilhões em impostos; concorrentes legais quebram; cadeias logísticas são cooptadas; agentes públicos são corrompidos; e comunidades pobres são atraídas por salários que chegam a R$ 46 mil, superiores ao do presidente da República. Em 2025, o esquema de combustíveis envolvendo US$ 9,6 bilhões expôs a fragilidade das instituições e o risco real de colapso econômico regional.
Comparação com os cartéis mexicanos (Sinaloa e CJNG)
Semelhanças: PCC e cartéis mexicanos como Sinaloa e CJNG operam como verdadeiras multinacionais do crime, diversificando atividades (drogas, armas, extorsão, mineração ilegal, contrabando), infiltrando Estados e movimentando cifras bilionárias. A escala é comparável: o PCC com R$ 52 bilhões em quatro anos; os cartéis mexicanos com US$ 13,6 a 49,4 bilhões anuais. Todos expandem internacionalmente, PCC na Europa e África; Sinaloa e CJNG nos EUA e Ásia, e formam alianças transcontinentais.
Diferenças: o PCC adotou um modelo mais corporativo, com forte integração à economia legal e menor exposição midiática da violência. Sinaloa e CJNG, ao contrário, ainda controlam territórios pelo terror explícito e impactam diretamente setores econômicos, destruindo regiões inteiras e gerando um custo equivalente a 20% do PIB do México. Enquanto o México sofre pela proximidade dos EUA, o Brasil se tornou o maior corredor do Atlântico Sul, com potencial para alcançar a mesma escala destrutiva.
Comparação com os cartéis colombianos (Medellín e Cali)
Semelhanças: PCC e cartéis colombianos compartilham raízes comuns, crescimento de redes ilícitas nos anos 1970 e 1980, explosão da cocaína, hierarquia rígida e controle territorial baseado na coerção. Ambos financiaram políticos, corromperam instituições e criaram “Estados paralelos” onde o poder público se tornou figurativo.
Diferenças: Medellín e Cali eram cartéis rurais, voltados à produção agrícola e inseridos em uma guerra civil que envolvia FARC, ELN e paramilitares, resultando em violência de escala quase militar. O PCC nasceu em prisões e favelas, expandiu-se em ambiente urbano, opera com inteligência mais sofisticada e camufla-se dentro da economia formal. A Colômbia enfrentou seus cartéis com o apoio operacional dos EUA, enquanto o Brasil hesita até mesmo em classificar o PCC como organização terrorista, permitindo que o grupo se expanda em silêncio e sem resistência externa significativa.
O Brasil está perigosamente próximo de repetir a trajetória mexicana entre 2006 e 2020, quando a combinação de impunidade, fragmentação institucional e avanço de cartéis resultou em mais de 300 mil mortos, cidades capturadas e forças de segurança incapazes de exercer autoridade plena. A diferença é que, aqui, o processo ocorre de forma silenciosa, disfarçado por debates ideológicos e pela recusa de reconhecer que o país enfrenta um fenômeno de natureza terrorista e não apenas criminal. Se o Estado continuar hesitante, sem políticas de longo prazo, sem integração real entre as forças e sem enfrentar a infiltração econômica e política dessas corporações do crime, o Brasil corre o risco concreto de ver regiões inteiras do Norte ao Sudeste, se tornarem zonas de exclusão, onde o poder público será mera formalidade e quem governará, na prática, serão as facções. Esta é a encruzilhada: ou o país assume a gravidade da ameaça e reage com a força e a estratégia necessárias, ou aceitará o destino que já devastou México, Colômbia e partes da América Central, com um custo humano e institucional que poderá marcar gerações.
Lições dos vizinhos: Caminho já trilhado rumo ao abismo
A região oferece um alerta brutal. Na Colômbia, a política de “paz total” não reduziu a violência; ao contrário, alimentou a multiplicação de dissidências das FARC e do ELN, que hoje somam mais de 5.500 integrantes e já utilizam o território brasileiro como retaguarda logística e rota de expansão. No Equador, a infiltração dos cartéis levou ao colapso das prisões, resultando em cerca de 400 mortos em motins que expuseram a perda completa de controle do Estado. Argentina e Paraguai já classificaram PCC e CV como organizações terroristas, aderindo ao movimento de pressão dos Estados Unidos, que solicitaram ao Brasil, em maio de 2025, que adotasse posição semelhante, pedido rejeitado por Brasília.
O risco é concreto: diante da recusa brasileira, Washington pode avançar para medidas unilaterais, como sanções financeiras segmentadas, restrições ao sistema bancário, limitações ao uso internacional do Pix e vigilância ampliada sobre movimentações comerciais. Uma economia com vulnerabilidades estruturais dificilmente absorveria esse impacto sem perda de autoridade diplomática.
Falhas sistêmicas: o veneno político e a paralisia institucional
O Brasil enfrenta um problema que não é apenas de violência, mas de engenharia institucional defeituosa. Estados agem isoladamente, sem uma diretriz federal robusta, coordenada e permanente. A corrupção, somada a uma guerra narrativa entre grupos políticos, transforma o tema em munição eleitoral, dilui a seriedade do debate e inverte prioridades. A palavra “narcoterrorismo” muitas vezes aparece mais como instrumento retórico do que como conceito técnico aplicado com rigor.
Analistas alertam para o risco dessa distorção: a politização pode gerar medidas midiáticas, ineficazes ou violadoras de direitos, que obscurecem as raízes do problema, incluindo vulnerabilidades sociais, falhas de inteligência, ausência de integração operacional e modelos antiquados de controle territorial. Assim, perpetua-se um círculo vicioso: decisões erráticas, pressão crescente e resultados insuficientes.
Sintomas de colapso: um Estado que perde o monopólio da força
Os sinais já são visíveis. A Amazônia e várias zonas urbanas vivem sob domínio paralelo de facções que controlam rotas, impõem leis próprias e desafiam abertamente o poder público. A economia clandestina acumula bilhões, supera setores formais e injeta capital em operações cada vez mais complexas.
O poder bélico das facções alcança um patamar sem precedentes: além do fluxo contínuo de armas estrangeiras, já existe produção interna de fuzis e componentes em território nacional, abastecendo arsenais locais com custos mais baixos e dependência reduzida de rotas externas. Rebeliões prisionais, ataques coordenados e uso intensivo de drones configuram um ambiente de conflito irregular em evolução acelerada.
As fronteiras seguem permeáveis, e as alianças com cartéis internacionais se sofisticam. O cenário lembra, cada vez mais, a Colômbia dos anos 1990, uma trajetória que, se não interrompida, tende a se tornar irreversível em poucos anos.
Reforma urgente do sistema de justiça: o pilar que falta para deter o avanço do narcoterrorismo
Nenhuma política de segurança, por mais bem equipada, integrada ou estratégica, sobreviverá sem uma reforma ampla e profunda do sistema de justiça brasileiro. Hoje, o Judiciário opera com gargalos estruturais que inviabilizam respostas rápidas e efetivas ao crime organizado. As facções entenderam essa fragilidade há muito tempo, explorando decisões fragmentadas, processos lentos, recursos intermináveis e interpretações benevolentes que descolam completamente da realidade do país.

Um dos pontos mais sensíveis é o topo da estrutura: o Supremo Tribunal Federal. A escolha política de ministros sem formação consolidada na magistratura criou um ambiente vulnerável a interferências ideológicas, disputas partidárias e decisões que, muitas vezes, não refletem coerência técnica nem leitura adequada do impacto nacional. A construção de um STF composto integralmente por magistrados de carreira, selecionados por critérios rígidos de experiência, notório saber jurídico e independência comprovada, é condição mínima para restaurar credibilidade, previsibilidade e segurança institucional.
Além disso, o país precisa de um novo marco legal, mais ágil, moderno e rigoroso. A legislação atual permite brechas que favorecem a impunidade de criminosos de alta periculosidade: progressões automáticas de regime, benefícios concedidos sem critérios robustos, audiências de custódia que ignoram a violência real das facções e decisões que liberam acusados armados, frequentemente reincidentes, em prazos absurdamente curtos.
É indispensável:
* criar mecanismos que assegurem o cumprimento integral de penas em crimes violentos e ligados ao narcoterrorismo;
* estabelecer ritos processuais céleres para facções, como ocorre em países que enfrentam terrorismo e crime organizado estruturado;
* impedir interpretações judiciais que distorçam o espírito da lei e ameacem a segurança coletiva;
* reforçar instrumentos de cooperação entre Judiciário, Ministério Público, polícias e órgãos de inteligência, para que o sistema funcione como unidade e não como arquipélago institucional.
Enquanto o Judiciário mantiver uma postura míope, muitas vezes hermética, desconectada do impacto nacional de suas decisões e excessivamente leniente, continuará alimentando o ciclo que permite que criminosos perigosos sejam soltos, inocentados ou beneficiados por interpretações que contrariam o sentimento de justiça e o interesse público.
Sem uma reforma profunda do sistema judicial, o Estado seguirá combatendo o narcoterrorismo de olhos vendados, enquanto as facções operam com clareza estratégica, organização empresarial e vantagem jurídica.
A urgência de investir em tecnologia e inteligência: o salto que o Brasil ainda não deu
O enfrentamento ao narcoterrorismo não será vencido apenas com mais efetivo ou mais operações pontuais: depende de uma revolução tecnológica que o Brasil insiste em adiar. Facções já operam como forças paramilitares digitais, com drones modificados, rádios criptografados, sistemas de alerta precoce e softwares de coordenação logística. Enquanto isso, órgãos de segurança e até as Forças Armadas seguem presos a orçamentos imprevisíveis, equipamentos defasados e limitações regulatórias incompatíveis com a realidade urbana e fronteiriça.
O país possui capacidade industrial e intelectual para avançar, mas carece de decisões estratégicas. Um exemplo emblemático é o drone Harpia, desenvolvido pela ADTECH, uma solução nacional de alta performance projetada especificamente para operações de vigilância, apoio tático e reconhecimento em ambientes complexos como Amazônia e grandes centros urbanos. Mesmo com potencial evidente, plataformas como o Harpia ainda não receberam investimentos públicos consistentes que permitam aquisição por parte dos estados, integração operacional e adoção massiva pelas polícias e Forças Armadas.
Além de aeronaves remotamente pilotadas, o Brasil precisa ampliar o uso de sistemas de monitoramento de comunicações, sensores eletro-ópticos, radares de pequeno porte, inteligência de sinais (SIGINT), análise de padrões, softwares de predição criminal e integração de bancos de dados em tempo real, pilares que países bem-sucedidos no combate ao crime organizado tratam como prioridade absoluta.
Outro obstáculo crítico está na regulamentação. A ANAC e o DECEA ainda mantêm barreiras que restringem ou burocratizam o emprego de drones das categorias 2 e 3 por forças policiais e militares em áreas urbanas. Isso impede sobrevoos contínuos, operações noturnas e uso irrestrito em comunidades dominadas por facções, justamente onde o Estado mais precisa de vantagem tecnológica. A revisão dessas normas, com protocolos de segurança e responsabilização bem definidos, é vital para permitir que aeronaves não tripuladas operem como extensão natural das equipes em terra.
Sem liberdade operacional, tecnologia nacional incorporada em larga escala e inteligência integrada entre União, estados e municípios, o Brasil continuará enfrentando facções equipadas com meios superiores, operando às cegas em territórios dominados e reagindo sempre um passo atrás.
Investir pesado em tecnologia não é luxo: é a única forma de equilibrar o tabuleiro de guerra que já está em curso.
O caminho para reconstruir a soberania brasileira e resgatar a segurança da América Latina
A crise que se impõe sobre o Brasil não é isolada: ela é o epicentro de um fenômeno que se espalha por toda a América Latina. A região vive um processo acelerado de captura territorial, institucional e econômica por estruturas do narcoterrorismo, que atuam de forma integrada e transnacional. Mas, embora o problema seja continental, é no Brasil que a batalha decisiva está sendo travada, e será aqui que a vitória ou a derrota da região será definida.
Colômbia, Equador e México mostram o quanto o colapso da segurança nacional pode corroer Estados inteiros. No entanto, nenhum desses países possui o peso geopolítico, demográfico, econômico e fronteiriço do Brasil. Se o maior país da região falhar em restabelecer seu monopólio da força, todo o subcontinente se tornará vulnerável à expansão das mesmas redes criminosas que já atuam de forma coordenada do Cone Sul à América Central. A América Latina, hoje, olha para o Brasil não apenas como líder natural, mas como barreira final entre estabilidade e caos.
O Brasil carrega essa responsabilidade não por escolha, mas por sua magnitude. Somos o maior mercado consumidor, a maior fronteira, o maior litoral, o maior sistema urbano e a maior infraestrutura logística da região. Tudo isso transforma o país no prêmio estratégico dos conglomerados criminosos transnacionais. Onde o Brasil recua, eles avançam; onde o Brasil se omite, eles se instalam; onde o Brasil hesita, eles se enraízam. A disputa pelo território brasileiro define, direta ou indiretamente, o futuro de toda a América do Sul.
Por isso, reconstruir a soberania nacional não é apenas uma necessidade interna, é um imperativo continental. O avanço do narcoterrorismo no Brasil cria um efeito dominó sobre vizinhos, pressiona rotas, fortalece cartéis regionais, multiplica fluxos de armas e estimula células que se movem sem fronteiras. Da Amazônia ao Prata, de Tabatinga a Foz do Iguaçu, cada quilômetro perdido pelo Estado brasileiro enfraquece não apenas nossa segurança, mas a de todos os países ao redor.
Mas o contrário também é verdadeiro: um Brasil forte, integrado e tecnologicamente preparado eleva toda a região. Recuperar portos e fronteiras, modernizar a inteligência, reestruturar o Judiciário, reverter a degradação penitenciária, blindar instituições contra infiltrações e romper com a fragmentação federativa não é só defender um país, é restaurar o eixo de estabilidade da América Latina.
O continente aguarda a liderança brasileira que há décadas se perdeu em disputas internas, ideologias estéreis e políticas improvisadas. A América Latina não precisa que o Brasil seja um espectador: precisa que ele volte a agir como potência regional. A reconstrução da autoridade estatal brasileira não é apenas a chave para pacificar nosso próprio território; é o único caminho para impedir que o narcoterrorismo domine definitivamente o tabuleiro continental.
O tempo, porém, está contra nós. As facções e cartéis não aguardam eleições, debates ou consensos. Avançam todos os dias. O Brasil ainda dispõe de recursos, instituições, know-how militar, indústria de defesa e capacidade tecnológica para virar o jogo. Mas essa janela está se estreitando.
A decisão que o país tomar agora, enfrentar ou ceder, não moldará apenas o futuro do Brasil, mas o destino de toda a América Latina. A região precisa do Brasil. E o Brasil precisa, urgentemente, de si mesmo.
por Angelo Nicolaci
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