As estradas do sul da Somália contam hoje uma história diferente da que marcava o auge da presença do al-Shabab. O que antes era anunciado pelo estrondo de comboios armados e colunas de caminhonetes técnicas, agora se dissolve no barulho discreto de motocicletas e no ranger de carroças de madeira. Para o jornalista e analista Abdi Guled, especialista em riscos políticos e segurança no Chifre da África, essa transformação não é apenas um ajuste tático, mas sim mais uma etapa no ciclo de adaptação que garante a sobrevivência de insurgências em ambientes frágeis.
“Eles agora se movem como mercadores”, confidenciou um morador de Jilib, voz baixa pelo medo de represálias. Essa frase resume o dilema atual: a insurgência que antes se exibia como força bélica hoje prefere a invisibilidade, misturando-se à população e tornando a distinção entre combatente e civil quase impossível.
A cartilha da insurgência global
O que ocorre na Somália não é caso isolado, mas parte de um manual já visto em outros conflitos:
* Talibã no Afeganistão: abandonaram comboios ostensivos e passaram a se deslocar em motocicletas e veículos civis, frustrando drones e sensores da OTAN até sua vitória política em 2021.
* Boko Haram na Nigéria: misturam combatentes em caravanas de pastores e comerciantes, explorando o fluxo humano para evitar ataques aéreos.
* Hamas em Gaza: inserem infraestrutura militar em meio à malha urbana, aumentando os custos políticos e humanitários de cada operação israelense.
* Houthis no Iêmen: adaptaram-se à superioridade aérea da coalizão árabe com dispersão e drones baratos, invertendo a lógica da guerra assimétrica.
O padrão é claro: mobilidade, camuflagem social e resiliência estrutural. Essas insurgências sobrevivem não por enfrentarem diretamente forças convencionais, mas por dissolverem-se e corroerem lentamente o Estado e sua legitimidade.
O dilema dos drones
A estratégia norte-americana de combater o Al-Shabab por meio de drones encontra limites evidentes. Um comboio armado é um alvo claro; já uma carroça com sacos de grãos pode carregar combatentes, ou apenas alimentos para uma família.
Essa ambiguidade reduz a efetividade militar e amplia os riscos políticos. Cada erro que resulta em civis mortos gera indignação local, fortalece a narrativa insurgente e enfraquece a legitimidade do governo somali e dos aliados estrangeiros.
Como apontou Guled, drones são eficazes contra alvos identificados, mas tornam-se problemáticos quando insurgentes se confundem com a população. A margem de erro encolhe, enquanto as consequências políticas e diplomáticas se ampliam.
Somália: entre o Estado frágil e a insurgência resiliente
Apesar das ofensivas recentes apoiadas por clãs aliados, o governo da Somália ainda não conseguiu consolidar presença efetiva no interior. O Al-Shabab continua arrecadando impostos, aplicando sua versão radical da lei islâmica e controlando vilas inteiras, ainda que agora de forma menos visível.
Para os civis, isso significa viver sob constante ambiguidade: uma carroça que parece carregar alimentos pode ser um alvo; um comerciante pode ser, na verdade, um combatente disfarçado. A incerteza alimenta o medo e a desconfiança.
A guerra invisível e o fator humano
O desaparecimento de comboios armados não significa a vitória do Estado, mas a adaptação do inimigo. O ciclo é conhecido: sob pressão, o grupo se retrai e se camufla; quando a vigilância diminui, ele reaparece, reorganizado. Essa elasticidade é a essência da guerra insurgente.
E para a população, isso significa estar presa entre dois fogos: de um lado, drones e operações governamentais; de outro, a persistente presença de um grupo que se disfarça, mas nunca desaparece.
O tabuleiro geopolítico do Chifre da África
O caso somali, no entanto, não pode ser visto isoladamente. Ele faz parte de um xadrez estratégico maior no Chifre da África, uma das regiões mais instáveis e disputadas do mundo.
Etiópia: após a guerra em Tigray, o país vive uma recomposição interna delicada. A instabilidade etíope tem reflexos diretos na Somália, já que tropas etíopes fazem parte da Missão da União Africana (ATMIS).
Eritreia: com histórico de confrontos com a Etiópia e uma postura militarizada, mantém influência na segurança regional e observa com interesse a evolução da situação somali.
Países do Golfo: Emirados Árabes Unidos e Catar disputam influência na Somália, financiando projetos de infraestrutura e apoiando facções políticas. Essa competição se entrelaça com a luta contra o al-Shabab, muitas vezes enfraquecendo a coesão interna.
Türkiye: consolidou-se como um dos atores externos mais influentes na Somália. Além de instalar uma das maiores bases militares fora do seu território em Mogadíscio, a Türkiye firmou acordos de cooperação militar e econômica de longo prazo, assumindo inclusive a responsabilidade de proteger e controlar o espaço marítimo somali por 10 anos. Isso garante à Marinha turca um papel direto na defesa das águas territoriais da Somália, região estratégica para o comércio global e para a segurança no Oceano Índico. Ancara também treina milhares de soldados somalis, fornece armamentos, apoio logístico e acordos na área de defesa que reforçam sua projeção como potência regional.
China: aposta em projetos de infraestrutura e na inserção da Somália na Iniciativa Cinturão e Rota, fortalecendo seu papel como ator econômico no Oceano Índico.
Estados Unidos: seguem focados no combate ao terrorismo, mas enfrentam crescente questionamento sobre a eficácia e os custos políticos de sua estratégia de drones.
Essa rede de interesses transforma a Somália em **ponto de convergência entre terrorismo, geopolítica e disputas econômicas globais**. O al-Shabab, consciente desse cenário, explora cada lacuna deixada pelo Estado e pela comunidade internacional.
Nosso olhar: além do contraterrorismo
Do ponto de vista estratégico, insistir numa solução puramente militar é insuficiente. O al-Shabab não se sustenta apenas pela força, mas pela ausência de alternativas estatais eficazes. Onde o Estado não chega com segurança, serviços e oportunidades, o grupo impõe-se como autoridade de fato.
Assim, o futuro da Somália depende de uma estratégia integrada que una:
1.Força militar sustentável, com tropas somalis treinadas e menos dependência de missões estrangeiras.
2.Construção institucional, com fortalecimento da governança local e combate à corrupção.
3.Inclusão socioeconômica, criando alternativas reais para comunidades que hoje dependem do al-Shabab.
4.Equilíbrio geopolítico, evitando que disputas externas transformem a Somália em palco de competição entre potências.
Conclusão: a guerra invisível continua
A análise de Abdi Guled revela a face mais atual da insurgência somali: menos visível, mas igualmente perigosa. O al-Shabab não busca derrotar o governo em campo aberto, mas corroê-lo lentamente, adaptando-se e resistindo.
Nosso olhar destaca que essa não é apenas uma guerra local, mas um fenômeno global das insurgências do século XXI, onde grupos compreendem suas limitações e transformam a invisibilidade em vantagem.
Enquanto o Ocidente aposta em drones e ataques seletivos, a Somália enfrenta uma realidade muito mais complexa: a de um inimigo resiliente, que se dissolve entre os civis e se alimenta da fragilidade do Estado.
No fim, a vitória dependerá não apenas de armas, mas da capacidade de reconstruir legitimidade e oferecer esperança a uma população que hoje vive entre drones no céu e combatentes disfarçados no chão.
por Angelo Nicolaci
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