segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

'Só poderemos voltar mortos': a vida dos soldados deportados dos EUA

Eles são estrangeiros, mas serviram às forças armadas dos Estados Unidos. Acabaram deportados para seus países por diferentes razões e, por ora, a única forma de voltarem aos Estados Unidos é depois de mortos, para serem enterrados.
A maioria é mexicana. Os que vão para Tijuana, na fronteira com a Califórnia, são acolhidos num abrigo criado por um veterano deportado.
O prédio é modesto, com apenas dois andares, mas oferece cama, comida, assessoria jurídica e, principalmente, conforto aos veteranos de guerra.
Héctor Barajas Varela fundou o local, conhecido como 'bunker', em 2013, depois de desistir de tentar - mais de uma vez - atravessar a fronteira para entrar nos Estados Unidos de forma ilegal.
Ex-integrante das forças armadas americanas, ele aguarda o processo legal para obter a cidadania norte-americana. Enquanto isso, trabalha, come e dorme no bunker.
O centro o ajuda a conter a ansiedade e a tristeza de estar separado da mulher e da filha, que vivem na Califórnia, onde Varela cresceu e morou por décadas.
Ele chegou aos EUA em 1984, aos 7 anos de idade. Cresceu nos arredores de Los Angeles. Aos 17, decidiu se alistar no Exército, onde serviu entre 1995 e 2001.
Varela explica que se alistou por diferentes razões. Queria ter acesso à educação, a um trabalho estável, à cidadania e também se afastar do ambiente em que cresceu.
"O serviço militar foi uma das melhores coisas que me aconteceram na vida. Conheci pessoas de todos os grupos e origens. Tinha hispânicos, brancos, negros e, principalmente, muita camaradagem", recorda.
Depois de atuar em diferentes áreas, ele se formou como paraquedista e foi escalado para uma unidade de elite, a 82 das Forças Armadas.
"Arriscávamos nossa vida, treinávamos e trabalhávamos duro, mas aproveitei. Foi uma das melhores épocas da minha vida", afirma.

Tiroteio e prisão


Os problemas de Varela começaram quando ele deixou o Exército, do qual saiu com honra.
"Uns meses depois estive envolvido num tiroteio e fui preso por mais de dois anos. Fui deportado para o México para cumprir sentença em 2004", conta.
O ex-paraquedista entrou novamente nos Estados Unidos sem documentos. Acabou detido em 2010. Depois dessa segunda deportação, decidiu não mais tentar a travessia de forma ilegal.
No ano passado, o governador da Califórnia, Jerry Brown, concedeu perdão a Varela, que pode dar entrada num processo administrativo para conseguir a cidadania. Há um ano e meio ele espera por uma resposta.

Mudança na lei

Até 1996, os veteranos do Exército dos Estados Unidos não podiam ser deportados, mesmo se tivessem cometido algum crime.
Uma nova legislação, aprovada naquele ano, criou novas regras para responsabilizar imigrantes e penalizar a imigração ilegal. A mudança na lei ampliou os casos em que cabe deportação, incluindo veteranos de guerra e proibindo juízes de fazer diferentes interpretações da legislação.
"É injusto deportar os veteranos, colocamos nossa vida em risco pelo país", argumenta Varela.
"O fato de sermos veteranos não justifica o cometimento de nenhum tipo de crime ou delito, mas já pagamos o que devíamos porque fomos para a prisão", diz, argumentando que há um excesso em expulsá-los do país.
Atualmente, a única forma de um veterano deportado voltar aos Estados Unidos é depois de morto.
Para Richard Ávila, de 62 anos, a ideia de ser enterrado na Califórnia, lugar de que tanto gosta, mas onde está proibido de ir, lhe parece uma grande ironia.
"Quando vivia nos EUA, visitei todos os túmulos de parentes e amigos. Tenho esse sentimento de lealdade", diz Ávila. "É muito cedo para dizer isso agora, mas seria terrível não poder visitar em vida o túmulo da pessoa que mais amo, a minha mãe", completa.
Ávila chegou aos EUA quando tinha pouco mais de um ano de idade. Seus pais migraram do México, com a família inteira. "Todo mundo tinha documento. Fui cidadão legal por 40 anos, antes de ser deportado e de me tirarem a residência legal".
Assim como Varela, Ávila também se alistou aos 17 anos e começou a prestar serviço aos 18. Ele foi à Guerra do Vietnã (1955-1975) e também esteve no Japão e nas Filipinas.
Com absoluta franqueza, ele relata que, nesse período, se viciou em drogas. "Nunca tinha experimentado drogas antes de me juntar aos Marines. É como se vê no filme Apocalipse Now, todos consumiam drogas", relata.
Ele diz que cedeu à pressão do grupo, começou a usar drogas e isso levou ao fim da sua carreira militar. "Me tiraram um ano antes de eu ir para a reserva. Sai sob 'condições indesejadas', era chamado assim".
Ao deixar a farda, Ávila seguiu usando drogas. Anos depois, cometeu um assalto à mão armada. Foi condenado a dez anos de prisão.
"Fui um delito bastante grave. Não posso tirar a importância. Cumpri cinco anos porque nessa época havia na Califórnia uma regra que lhe compensavam um dia de prisão por cada dia de pena cumprida", conta.

Várias deportações
Assim que Ávila cumpriu a sentença, autoridades emitiram uma ordem de deportação contra ele, em 1997, depois de uma miríade de recursos.
Nos anos 1990, era mais fácil cruzar a fronteira entre México e EUA do que agora. Ávila fez a travessia várias vezes. Ele coleciona uma história de dez deportações.
A última vez que foi detido, em 2008, estava na Califórnia. Desde então, passou mais uma vez pela prisão e foi novamente deportado. Nunca mais pisou nos EUA.
Ele lamenta não ter se despedido da mãe, que morreu há oito anos.
"O mais duro é aceitar que não vou voltar a vê-la e estar numa situação em que não podia assistir ao funeral nem visitar o túmulo dela", diz, emocionado.

Contra a solidão

Tanto Varela quanto Ávila, assim como os outros homens que vivem no bunker, têm família nos EUA e ainda alimentam a esperança de poder voltar um dia.
"Uma das coisas que mais ganho no bunker é esperança. Tenho esperança de que um dia nos deixem voltar aos EUA. Espero estar vivo para vê-lo", diz Ávila, que define o bunker como um lugar onde todos os deportados podem se sentir acompanhados.
"Quando cheguei a Tijuana me sentia muito sozinho. Não conhecia o país, não falo muito bem espanhol. No bunker, Héctor me ofereceu cama e comida", relata.
Varela oferece assessoria jurídica e técnica sobre acesso a benefícios financeiros e médicos.
Mas o que realmente une esses homens é a camaradagem, palavra que mais repetem.
"No Exército nos ensinaram a não deixar nenhum homem para trás. Seguimos obedecendo a essa ordem", diz Varela.
"O que mais gosto é que quem chega se sente a vontade para falar... se tem fome, tem comida. É um lugar onde ninguém se sente sozinho nem com medo", completa Ávila.

Fonte: BBC Brasil
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