quarta-feira, 31 de março de 2010

O sonho do desarmamento nuclear e a próxima revisão do Tratado de Não Proliferação


Faz cinco anos no próximo dia três de Maio sobre o início do último processo de revisão do Tratado de Não Proliferação (TNP), uma oportunidade que não foi aproveitada para tornar mais eficaz o atual regime de combate à proliferação nuclear nem para ajudar a resolver os dois problemas já então mais prementes: os casos do Irão e da Coreia do Norte. Dentro de pouco mais de um mês, teremos uma nova ocasião de ouvir o que os 189 signatários do Tratado têm a sugerir sobre o assunto mas, de momento, as expectativas principais centram-se na forma como os EUA concluirão a formulação da nova Nuclear Posture Review, nomeadamente na abordagem que farão em relação ao desarmamento nuclear, na linha do discurso do Presidente Obama em Praga.

George Schultz, um dos subscritores do artigo escrito em parceria com Kissinger, William Perry e Sann Num para o Wall Street Journal, em Janeiro de 2007, a defender o desarmamento nuclear, mostra-se animado com a adesão crescente que a ideia tem vindo a ganhar. Segundo Ivo Daalder, esta visão é presentemente partilhada por dois terços de antigos secretários de Estado, secretários da Defesa e conselheiros nacionais de segurança. Parecem distantes os tempos em que, enquanto secretário de Estado de Reagan, Schultz era “recriminado” por Margaret Tachter por não ter conseguido convencer o Presidente em não avançar com propostas de desarmamento que este então quis discutir com Gorbachev.

Estará hoje o mundo melhor preparado do que nessa altura para encarar essa possibilidade? As reduções dos arsenais nucleares, entretanto empreendidas pelas duas potências que protagonizaram o equilíbrio de terror em que se viveu a Guerra Fria e a vontade que mostram em continuar esse processo, dizem-nos que sim. Não obstante as dificuldades do processo, expressas no atraso de três meses na negociação de um novo START (Strategic Arms Reduction Treaty) está anunciada a cerimónia da sua assinatura para 8 de Abril em Praga, com a presença dos Presidentes Obama e Medvedev. Nos termos do novo acordo os tectos máximos baixarão das 2012 armas estratégicas, previstas no acordo STORT de 2003, para 1550[2] e os sistemas de lançamento (bombardeiros e mísseis baseados em terra e no mar) serão reduzidos de 1600 para 700[3]. Em qualquer caso, o acordo está ainda dependente da obtenção de algum apoio do Partido Republicano para reunir os 67 votos que a sua rectificação exige.

Mas esta é apenas uma das faces do problema; na outra face, temos que contar com uma China que, inconformada com o facto de não ter uma situação de paridade com a Rússia e os EUA, continua a desenvolver, quantitativa e qualitativamente, o seu arsenal nuclear. Temos também a provável próxima entrada de mais dois membros no “clube nuclear” (Irão e Coreia do Norte[4]) o que ameaçará o saldo ainda positivo[5] entre os que abandonaram as pretensões de se tornarem potências nucleares e os que entretanto ingressaram no “clube”, desde a entrada em vigor do TNP. O caso do Irão, em vias de se tornar a 10ª potência nuclear, poderá conduzir outros países da região a enveredarem por uma opção nuclear, o que teria consequências dramáticas para o equilíbrio já extremamente precário do Médio Oriente e para a sobrevivência do próprio Tratado TNP. O Japão e a Coreia do Sul poderão também optar, rápida e facilmente, pela posse de armas nucleares se, na sua avaliação, concluírem que a ameaça da Coreia do Norte não fica coberta pelo “guarda-chuva nuclear” americano.

Estes casos, que aliás se arrastam há vários anos, configuram uma situação que no essencial não difere da que se verificava na última tentativa de revisão do TNP[6]. A única diferença é o ambiente de algum optimismo gerado pela possível mudança de postura dos EUA, não obstante ainda não se conhecerem os seus detalhes, e pelas reduções aprovadas pelas duas principais potências nucleares no âmbito do novo Tratado START. No entanto, as probabilidades que este novo contexto leve a conferência de revisão do Tratado NPT a um desfecho positivo nas suas três vertentes - desarmamento, não proliferação e uso pacífico da energia nuclear - são muito remotas. Já veremos porquê, com uma breve análise de três questões-chave: as reduções dos arsenais, a definição do seu propósito e a reconsideração das bases em que assenta o Tratado NPT.

A redução dos arsenais

A redução dos arsenais nos termos em que tem sido conduzida, desde a presidência de George H. W. Bush que diminuiu o número e a prontidão das armas estratégicas e eliminou cerca de 5000 de curto alcance que estavam estacionadas na Europa, esforço continuado pelos seus sucessores, só tem servido as duas principais potências nucleares, mas com maior vantagem para os EUA. Corresponde, na prática, a uma troca de quantidade por qualidade, expressa em termos de maior precisão e maior potência, em nada afectando a capacidade de dissuasão de cada uma. Dou um exemplo[7]: em 1985, um míssil intercontinental com uma única ogiva não tinha mais do que 60% de hipóteses de destruir um silo inimigo; quatro ou cinco ogivas permitiriam 90%. Hoje, um Tridente II com uma ogiva múltipla tem 99% de probabilidades de destruir o mesmo alvo.

A essência da situação existente em termos de armas de destruição maciça não se alterará agora com a decisão das duas potências reduzirem de 2000 para 1500 os seus arsenais. Também não são essas reduções que poderão ter qualquer impacto positivo no risco do terrorismo nuclear; este depende sobretudo da segurança do material nuclear usado no fabrico das bombas e não nestas propriamente ditas. A lógica da avaliação quantitativa que se faz geralmente às forças convencionais não é aplicável a forças nucleares; enquanto que no primeiro caso, o importante é não ter menos navios, tanques ou aviões do que o eventual oponente, no caso das armas de destruição maciça basta a posse de um pequeno número para alterar completamente a situação. O conceito de dissuasão limitada (finite deterrence), por exemplo, baseia-se apenas na manutenção da capacidade de infligir um dano inaceitável, através, por exemplo, de um ataque a um centro populacional importante, sem qualquer pretensão de paridade. É o contexto em que se julga estar a ser desenvolvido o programa iraniano.

Aliás, as reduções nem sequer têm servido o propósito de desencorajar os que se encontram determinados a entrar no clube nuclear, obviamente a prioridade principal da próxima conferência de revisão do Tratado NPT. Se funcionasse nesses termos então já se teriam feito sentir as sucessivas reduções sucessivas feitas desde o primeiro Tratado START. A redução pode funcionar bem entre países que têm paridade nos seus arsenais (caso da Rússia e dos EUA) mas tem vários efeitos perversos fora desse contexto; por exemplo, encoraja os outros, com arsenais mais pequenos, a procurar a paridade (caso da China) e diminui a capacidade de manter a protecção de aliados e amigos, podendo levá-los a iniciar a aquisição do seu próprio arsenal, como pode ser o caso de alguns países do Médio Oriente, nomeadamente a Arábia Saudita, o Egipto e a Turquia.

As reduções, mesmo entre os que têm paridade, podem falhar se não for tido em consideração que existe uma relação directa entre sistemas ofensivos e defensivos, como é o caso do escudo de protecção antimíssil, não obstante as repetidas garantias dos EUA de que o sistema está configurado apenas para a contenção do Irão. Foi o não reconhecimento desta realidade, por parte da administração Bush em 2001, que levou a Rússia e a China a declarar que perante o abandono do Tratado Anti-mísseis Balísticos (Tratado ABM), não lhes restava senão desenvolver os seus arsenais nucleares até repor a paridade. Foi de novo esta situação que levou Moscovo a insistir na abordagem desta questão no âmbito da negociação agora terminada do Tratado START para obter um compromisso dos EUA, o que não foi aceite. Em qualquer caso, é pouco provável que Moscovo venha a concordar com novas reduções proximamente; a manutenção do actual arsenal e em especial a vantagem detida no campo das armas sub-estratégicas de curto alcance representa a única forma de compensar a desvantagem existente em forças convencionais.

O propósito das armas nucleares

Há quem as designe por “armas inúteis”; não servem para projectar poder nem para ocupar território; o seu emprego põe em causa o princípio da proporcionalidade de acção, ameaçando a credibilidade do seu propósito de dissuasão principalmente num contexto de segurança como é o actual, muito dominado pelas ameaças assimétricas e actores não estatais. São, no entanto, armas de influência estratégica[8] para que alguns estados olham como garantia de sobrevivência dos respectivos regimes e políticas, apreensão suscitada pela facilidade com que os EUA empreenderam as suas mais recentes intervenções militares convencionais, conseguindo uma rápida mudança de regime (Panamá, Kosovo, Afeganistão, Iraque). Representam hoje, para os adversários dos EUA, o tipo de resposta a que a NATO teve também que recorrer na Guerra Fria perante a vantagem convencional do Pacto de Varsóvia.

Os EUA têm-nas considerado um elemento crítico da sua segurança nacional, sob a convicção de que a dissuasão não é possível sem a sua posse, mal grado a absoluta superioridade convencional de que desfrutam. Continuam a investir na sua modernização e adaptação a novos cenários, embora sob restrições impostas pelo Congresso que, por exemplo, não aprovou o desenvolvimento da versão “bunk buster” com capacidade de penetração em infraestruturas protegidas. Aumentando a sua precisão, têm tornado possível a redução da sua potência e consequentemente o respectivo impacto colateral; estas circunstâncias tendem a tornar menos complexo o eventual recurso ao seu emprego, na perspectiva “counterforce”, isto é, dirigida à eliminação das capacidades nucleares do inimigo sem o risco de aniquilação de centros populacionais.[9] Embora admitam a possibilidade do seu uso contra um ataque convencional ou por armas químicas/biológicas, excluem, desde a administração Carter, o seu eventual emprego contra países que não as possuem, a menos que ataquem os EUA com o apoio dessas armas com a colaboração de terceiros.

Espera-se que o que dirá neste âmbito a nova Nuclear Posture Review configure um dispositivo substancialmente diferente, mais limitado no seu propósito, acabando com ambiguidade em que tem sido mantido e reduzindo o leque das circunstâncias em que possam ter que recorrer ao seu uso. Se assim não for, faltará credibilidade nos seus esforços de combater a proliferação horizontal.

As bases do Tratado NPT

O Tratado NPT é o resultado de complexas negociações que se estenderam por toda a década de sessenta e que obrigaram a compromissos mas que, no essencial, tem cumprido, até melhor do que se calculava, a finalidade para que foi aprovado: impedir a proliferação horizontal, ou seja o aparecimento de novas potências nucleares. Está, no entanto, ameaçado, como vimos atrás, principalmente pela recusa do Irão em aderir ao regime estabelecido e pelos reduzidos progressos no desarmamento a que as potências nucleares de então se comprometeram, embora não tenha sido estabelecido qualquer prazo.

O seu problema central é a contradição prática que encerra ao proibir a proliferação de armas nucleares e respectiva tecnologia mas, ao mesmo tempo, promover o uso pacífico da energia nuclear sem restrições ao enriquecimento de urânio, sendo que esta capacidade torna qualquer utilizador a uma distância curta de levar o processo até conseguir material para construir uma bomba. Por outras palavras, dá demasiado espaço à possibilidade de conversão de um programa legal num programa ilegal.

Esta dificuldade foi prevista ainda antes de começarem as negociações que levaram ao Tratado, quando Bernard Baruch, então representante dos EUA na ONU, na segunda metade da década de 40, sugeriu a criação de uma autoridade internacional que deveria controlar a posse e administração dos meios de produção de energia atómica. É a medida de que se voltou a falar recentemente, através da criação de um “banco de urânio” para alimentar os reactores, questão que se agudizará a curto prazo com a maior procura de energia nuclear para a produção de electricidade e o previsto crescimento exponencial do número de reactores em funcionamento em todo o mundo. Trata-se de encontrar uma nova forma de gerir o mercado de urânio enriquecido, pondo o ciclo de urânio sob controlo internacional, uma questão que seria muito importante ver discutida na próxima conferência de revisão do Tratado NPT. Perdendo-se esta oportunidade, a próxima só surgirá dentro de cinco anos!

Conclusão

O progresso que poderemos esperar no futuro próximo depende, não em exclusivo mas em parte importante, da forma como serão abordadas os temas que ameaçam a credibilidade do Tratado NPT. A redução dos armamentos nucleares, acordada pelas potências que detêm 95% das actuais existências é obviamente um deles mas precisa de ser complementado por uma delimitação do seu propósito, rigorosa e sem as actuais ambiguidades, o que está pendente, no lado americano, do desfecho da elaboração da nova Nuclear Posture Review, que se aguarda. A negociação de um novo regime de controlo do material nuclear e de inspecções juntamente com esforços diplomáticos de alargamento da base de apoio à opção zero são as outras duas medidas que a situação exige. Estarão as potências nucleares dispostas a comprometerem-se com a concretização destas medidas?

Fonte: Jornal Defesa e Relações Internacionais
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