quarta-feira, 31 de março de 2010

Brasil potência – realidade ou mito?


Entre várias coisas certas ou erradas que foram ditas a respeito do que escrevi durante as décadas de 70 e 80, uma delas me parece indiscutível: que eu defendia a idéia de que o Brasil era uma grande potência. De fato, na contra-mão da onda que marcou o período dos governos dos Presidentes militares, a de marasmo intelectual e descrença no País de muitos dos que estavam na Universidade, procurei mostrar que o Brasil era, sim, grande. E que poderíamos construir a Pátria Grande.

“Pátria Grande” vinha do desejo de encontrar uma idéia-força que fosse capaz de mobilizar pessoas em torno de um grande ideal nacional. A proposição de que o País tinha possibilidades de afirmar-se como potência num mundo conturbado pela Guerra Fria vinha da reflexão sobre alguns dados brutos que fundamentavam a utopia – que outra coisa não era a idéia de Pátria Grande.

Os dados eram conhecidos de quantos, no exterior, estudavam o chamado Poder das Nações. Recordo-me de um pequeno livro de Geografia, escrito por um inglês (que li em 1972) que buscava classificar os países medindo o seu poder. O Brasil vinha em 10º lugar, embora não tivesse Forças Armadas merecedoras de uma nota, digamos, de aprovação, e a geração de energia, medida em equivalentes de barris de petróleo, fosse, à época, bem menor do que é hoje. Éramos um país com grande poder porque o território era vasto, a população igualmente numerosa, a posição (pensando em termos de Geopolítica) altamente favorável na América do Sul e, por extensão, no Hemisfério. Pesando os dados bons e ruins, o professor inglês nos classificava como a décima potência do mundo em termos de Poder Nacional. Meus alunos na USP não acreditavam nisso – e até riam.

Se os governos dos Presidentes militares não conseguiram cuidar suficientemente de construir a Pátria Grande, não descuraram de fortalecer os elementos materiais que poderiam fazer que o País conservasse aquela posição. No desejo de mantê-la, cuidaram antes de tudo de fortalecer o Estado e guiaram-se pela vontade de construir uma economia em que a inflação não prejudicasse o desenvolvimento, mesmo que a taxa inflacionária fosse estabelecida por decreto - os 13% ao ano no governo Médici. Cuidaram eles de fazer grande um grande país - mas cuidaram sempre, também, de manter, nas suas relações com o resto do mundo, especialmente com os países circundantes, uma posição discreta.

Recordo-me de que, quando Nixon disse a Médici que para onde fosse o Brasil iria a América Latina, a reação em círculos militares foi negativa: a idéia de hegemonia não lhes era grata. Esta cautela diplomática não impediu que, no mesmo governo Médici, fossem adotadas duas medidas que contrariavam a discrição que muitos dos que cercavam o Presidente desejavam fosse norma de nossa política externa: a tentativa de conquistar uma posição de influência no Caribe, com um empréstimo à República Dominicana, e o oferecimento de mediação no conflito entre Israel e os palestinos. Para tranqüilidade dos que desejavam a todo custo manter reserva sobre o que o Brasil poderia vir a ser, estas iniciativas praticamente morreram no nascedouro.

A cautela diplomática desapareceu depois, no chamado período “democrático”, com uma nova postura em nossas relações internacionais que ficou conhecida como “diplomacia presidencial”. Não sei se os presidentes militares tinham assessores especiais para relações internacionais — sei que esta função existiu no governo Sarney, quando o Embaixador Ricúpero ocupou discretamente as funções, e depois passou a ser prática comum aos demais Presidentes, especialmente nos governos Fernando Henrique Cardoso e, agora, Lula da Silva.

Teço essas considerações tendo em vista a ação diplomática do atual governo e procurando compreender quais fatos reais fazem do presidente Lula da Silva a figura que a propaganda nos mostra todos os dias e no que se fundamenta essa propaganda, que busca convencer todos nós de que o Brasil, hoje, tornou-se importante, e pode aspirar a um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Vamos aos fatos na tentativa de compreensão. Nada melhor do que lembrar, em primeiro lugar, os fatores que permitiam ao Brasil, no começo dos anos 1970, ser considerado por alguns como a décima potência do mundo.

Território − Apesar de o Estado brasileiro ter, há alguns anos, começado a perder jurisdição total sobre parte de seu território (índios e quilombolas, para não falar dos territórios “governados” pelo tráfico), ainda temos, oficialmente, oito milhões e 500 mil quilômetros quadrados.

População − Dos cerca de 90 milhões de habitantes que as estatísticas registaram no governo Castelo Branco, chegamos, hoje, aos 190 milhões — o que significa que nosso mercado interno aumentou praticamente uma vez e meia. Este número conta, sem dúvida, como fator de poder, mas, ao mesmo tempo, deve ser visto com cuidado, pois pode se transformar em fator negativo desde que o Estado não seja capaz de dar a estes quase 200 milhões educação, saúde, transportes, emprego. Ao mesmo tempo, o crescimento do mercado interno poderá também transformar-se num fator negativo se o Estado não tiver políticas, vale dizer, poder capaz de conciliar a necessidade de crescimento econômico, para atender às necessidades básicas da população, com a conquista deste mercado por empresas estrangeiras que aqui vêm fazer negócios, influenciar pessoas e fazer amigos no Governo ou próximo dele.

Ao falar em população, é necessário levar em conta fatores a um tempo quantitativos e qualitativos. Da perspectiva quantitativa, conta favoravelmente o aumento da chamada classe média, ainda que a renda que caracterize os que pertencem a este segmento social deva também ser vista com cuidado (o patamar superior está perto os R$ 4.000,00 e o inferior exige, de fato, um malabarismo intelectual). Do ponto de vista qualitativo, a crise da educação, da saúde e a falta de profissionais gabaritados, de nível médio e superior, em áreas críticas apontam para deficiências estruturais que impedem um desenvolvimento econômico sustentável e, sobretudo, tecnológico nacional.

Recursos minerais − São amplos, mas a dependência do exterior decorrente da falta de muitos deles, essenciais à indústria civil e à de defesa, reduz a importância que se empresta àqueles que exportamos como commodities, ajudando a equilibrar a balança de comércio e o balanço de pagamentos. Enquanto commodities, convém lembrar, seu preço (não seu valor) está preso às variações (e especulações) do mercado internacional.

Agricultura − No início do século XXI, o Brasil é o terceiro exportador mundial de grãos. O que torna a produção dependente da flutuação de preços no mercado internacional e da concorrência dos demais produtores, grandes ou médios. Para as estatísticas oficiais, a balança comercial e a propaganda governamental, ser o terceiro exportador de grãos é um fato de poder, embora a flutuação de preços internacionais possa ser fator negativo para os produtores.

Energia − A anunciada auto-suficiência em petróleo está definida pela relação produção de óleo bruto/consumo de derivados. É, portanto, ilusória, pois as refinarias não produzem os derivados em quantidade suficiente para abastecer o mercado. Dependemos, pois, do mercado externo. O etanol e o bio-diesel poderão reduzir em boa medida esta dependência e podem, como alguns analistas já consideram, projetar o País como “potência energética alternativa”. Há de ver, contudo, que para que possamos alcançar este patamar será necessário planejar com critérios rigorosos a extensão da área cultivada para a produção de combustível alternativo, sob pena de haver uma crise de abastecimento. Em energia hidráulica, podemos falar em estado de quase-graça, na medida em que as deficiências na interligação dos sistemas e a ausência de usinas geradoras e/ou a produção deficiente em diferentes regiões (não apenas no Norte e Nordeste, mas também no Sul), obriga o uso de usinas térmicas, a maioria delas utilizando derivado de petróleo.

Forças Armadas − Desgastadas em suas funções e convicções, com insuficiente, quando não inexistente respaldo tecnológico nacional para as transformações impostas pela “revolução de armamentos”.

PIB – São inegáveis o aumento do Produto Interno Bruto, o volume das reservas internacionais e a situação normal da dívida externa da União – e alguns poderiam apontar erros nesta política de acumulação de reservas. São fatores que contam quando cuidamos de traduzir em números o poder nacional.

O que temos, hoje, à luz destes dados, é uma situação que permite ao país ser considerado novamente a 10ª potência mundial, se não a 7ª ou 8ª, pretendendo chegar à 5ª posição este ano. A questão que se coloca, no entanto, é a seguinte: são estes dados suficientes para explicar a projeção internacional do Brasil e o prestígio internacional do Presidente Lula da Silva, quando sabemos que alguns países membros do G-8 (e seus governantes) não têm esta projeção?

A resposta possível a esta pergunta não pode residir nos dados numéricos, nem mesmo se considerarmos que o peso das Forças Armadas poderá aumentar se houver disponibilidade orçamentária. Esta resposta só poderá ser encontrada, ainda que tentativamente, no que poderíamos chamar de plano político.

Desta perspectiva, a análise deverá começar por uma apreciação do quadro internacional depois do desaparecimento da União Soviética e da crise de prestígio em que os Estados Unidos mergulharam com as duas guerras em que está envolvido: Iraque e Afeganistão.

Autor: Oliveiros S. Ferreira -> Professor de Política e Relações Internacionais da USP e da PUC-SP e ex-director de Redação do jornal “O Estado de S. Paulo”.


Fonte: Jornal Defesa e Relações Internacionais
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