terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Morre embaixador dos EUA que apoiou o golpe de 1964


Morreu no sábado, aos 96 anos, o diplomata e acadêmico Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe militar de 1964, na véspera do qual propôs ao governo norte-americano a formação de uma força-tarefa naval que, se preciso fosse, zarparia para a costa brasileira para ajudar as forças que acabariam por derrubar o governo de João Goulart (1961-1964).

A ação foi aprovada pela Casa Branca de Lyndon Johnson (1963-1969) e ganhou o nome de Operação Brother Sam. Goulart caiu antes que os navios -um porta-aviões e seis contratorpedeiros- chegassem. Gordon foi embaixador no Brasil por mais dois anos, até 1966, quando regressou a Washington e assumiu a reitoria da Universidade Johns Hopkins.

O diplomata passaria a próxima década negando a participação no golpe, mas seria desmentido pelas evidências históricas -pelos documentos então sigilosos que foram sendo tornados públicos pelos EUA, pelo trabalho de repórteres como Marcos Sá Corrêa, que em 1976 descobriu a papelada que comprovava a operação naval, e pela reconstrução minuciosa de Elio Gaspari em seus livros sobre a ditadura no Brasil.

Nos últimos anos, ficou-se sabendo que, no próprio dia 1º de abril de 1964, o então embaixador mandou recados de Washington a governadores e militares rebelados; seis meses antes, tinha sido autor de "Um Plano de Contingência", no qual de certa maneira já antecipava a Operação Brother Sam.

Segundo escreve Gaspari no livro "A ditadura Envergonhada", "a costura militar do embaixador era antiga. Era anterior ao plebiscito [de janeiro de 1963] que devolvera os poderes presidenciais a Jango e se baseava no receio de que se estivesse caminhando para uma ditadura "pessoal e populista"." Segundo o relato, Gordon e o presidente John F. Kennedy (1961-1963) falaram sobre o assunto já em 30 de julho de 1962.

Ele fora apontado para o cargo no Brasil por JFK em 1961, recusando outro hierarquicamente superior. Vinha de ajudar o novo governo na formação da Aliança para o Progresso, programa assistencialista do presidente democrata para dissuadir países da América Latina a passar para a órbita de influência da União Soviética.

Abraham Lincoln Gordon nasceu em 10 de setembro de 1913 em Nova York. Professor de economia de Harvard, estava ligado no fim da vida ao instituto Brookings. Viúvo, deixa quatro filhos. Em 2001, lançou um livro em que fala da passagem pelo Brasil, "A Segunda Chance do Brasil" (Senac).

Embaixador dos Estados Unidos no Brasil durante o golpe de 64, Lincoln Gordon passou as décadas seguintes de sua existência tentando explicar-se sobre aqueles dias decisivos. (Na foto, Gordon e o presidente Lindon Johnson na Casa Branca).

Formado em Harvard, Gordon foi um entre tantos intelectuais americanos chamados a ocupar posição de destaque no governo de John Kennedy,
empossado como uma esperança de renovação na política americana — e uma promessa de conter as idéais comunistas impulsionadas pela vitória de Fidel Castro em Cuba.

Gordon veio ao Brasil para estimular da Aliança para o Progresso, um projeto da Casa Branca que pretendia ajudar o desenvolvimento da América Latina, com programas ousados de ajuda e reformas sociais em várias áreas, inclusive educação e reforma agrária.

Conheci Gordon logo depois de mudar para os Estados Unidos como correspondente da Gazeta Mercantil. Eu era correspondente em Washington e consegui um furo de reportagem: um documento que relatava um encontro entre o embaixador, John Kennedy e um assessor presidencial, na Casa Branca. Ninguém tinha visto coisa parecida antes — e fui o primeiro a publicar a história.

Conforme o documento, em julho de 1962, numa reunião curta, os três discutiram uma informação trazida pelo embaixador: estava em curso, em nosso país, um movimento destinado a tirar Goulart de seu posto — e Gordon queria saber o que fazer. Kennedy deu uma resposta para a posteridade, dessas que parecem escritas por advogados já de ôlho nos livros de história. Disse que os EUA poderiam apoiar o movimento dos militares — desde que ele respeitasse a Constituição.

Concretamente: a Casa Branca aceitava a idéia de livrar-se de Goulart e até poderia apoiar o golpe — mas fazia questão de que os militares mantivessem as aparências, cuidado ainda essencial na retorica da Casa Branca naquele período da Guerra Fria. O apelo de respeito a Constituição feito por Kennedy era um caso típico de retórica imperial — pois não se conhece Constituição que autorize a deposição de um presidente eleito a partir de subversão militar. Pedi ajuda a um diplomata brasileiro para entender o texto com toda clareza. Era aquilo: Kennedy deu o sinal verde mas não queria comprometer-se.

Com um papel tão precioso na mão, fui passar o assunto a limpo com o embaixador. Gordon não negou o que fora dito no encontro — nem poderia, pois a conversa na Casa Branca fora registrada pelo sistema de gravações do governo americano. Preocupado com a repercussão do episódio, passou toda a entrevista tentando diminuir o papel do governo americano no golpe de 64.

A reunião de 1962 era um evento especialmente constrangedor para um diplomata com sua formação acadêmica e que, quatro décadas depois, após a redemocratização do Brasil, gostava de ser recebido com boa vontade nos coquetéis e festas do governo brasileiro e até visitava o país sem ser
alvo de críticas e muito menos de protestos. A democratização do país fora ampla e quase irrestrita — e Gordon não queria ficar de fora, apesar do passado.

Para reforçar seu argumento, me deu o que seria a reconstituição de seu célebre diálogo com o secretario de Estado Dean Rusk no 1 de abril de 64. Levei uma cópia do documento comigo — até descobrir que faltava uma folha, exatamente aquela que registrava as ofertas de armamento pesado e até víveres para os golpistas.

Confesso que até hoje esse episódio me intriga. Seria o embaixador tão ingenuo a ponto de acreditar que eu não iria conferir o material que ele me entregou? Ou tudo não passou de um acaso, um descuido na hora de copiar aqueles papéis?
A máquina xerox deu problema, como ele me disse, quando lhe perguntei por que não me passara justamente aquela folha mais importante? Não sei. Gordon morreu com 95 anos e já estava velhinho, no ano 2 000. Tinha de se virar sòzinho para copiar documentos no Brookings Institution, imponente entidade de pesquisas de Washington, com históricas ligações com o Partido Democrata. Estava tenso e preocupado, quando conversamos sobre a reunião de 1962. Voltamos a falar sobre o assunto, muitos meses depois. Eu voltei a perguntar sobre a página desaparecida. Mais uma vez ele colocou a culpa na máquina de xerox — mas, desta vez, sorria de modo irônico. Não pretendia me convencer. Expressamente, jamais admitiu que cometera um engano proposital.

Na medida em que a democratização do Brasil avançou, Gordon passou a
reconstruir a própria biografia, afastando-se dos golpistas com os quais havia se aliado.
O apoio americano pode ser resumido por este editorial do New York Times, no 7 de abril, apenas uma semana depois da queda de Goulart. Dando crédito a versão de que o golpe teve apoio popular quase unânime, o que está longe de ser verdadeiro, o mais prestigiado jornal americano escreveu: “É difícil saber quem ficou mais satisfeito com a derrubada de Goulart, os próprios brasileiros ou o Departamento de Estado dos Estados Unidos da América.”

Diplomata com posto no Brasil, na época, Jerome Levinson recordou o esforço de Gordon para cortar os programas de ajuda a Goulart — e restaurá-los assim que os militares assumiram o governo. Em entrevista, o próprio Gordon admitiu essa postura, naquela época.

O problema é que, como sempre acontece, após um golpe de Estado sempre vem uma democratização — e aí é preciso saber o que se faz com a biografia de cada um. Após a ditadura, a atitude de Gordon era do sujeito que tinha um problema no passado, como o sujeito que fizera alianças erradas — mas queria que os demais fingissem que não sabiam de nada. Chegava às recepções em Washington com um sorriso tímido, quase inseguro, como se temesse ser identificado e denunciado por um convidado de idéias radicais — o que nunca acontecia. Aos poucos, mostrava-se confiante e à vontade.

Meses antes de minha reportagem, ele havia comprado uma disputa pública com o ex-ministro Ronaldo Costa Couto, que publicara suas pesquisas sobre o golpe de 64 e falara sobre o papel da CIA no Brasil. Na época, Gordon sustentou que a CIA passara longe da deposição de Goulart. Sua linha de argumentação sempre fora essa. Mas os documentos sobre o diálogo na Casa Branca — e o telefonema do 1 de abril — desmentiam isso.

Embaixador no Brasil entre 1961 e 1966, Lincoln Gordon foi personagem do
processo de endurecimento da diplomacia americana no Continente, iniciada
quando se verificou que as idéias reformistas da Aliança para o Progresso não iriam levar a nenhum lugar: não eram generosas a ponto de seduzir o eleitorado de esquerda nem conservadoras a ponto de virar uma bandeira da direita. Ao deixar o Brasil, Gordon tornou-se subsecretário de Estado para a América Latina, posto que ocupou até 1968. Nessa condição, assistiu a militarização quase integral do Continente, sempre com apoio do governo americano.


Fonte: Folha / Época
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