domingo, 3 de maio de 2020

Os desafios logísticos da USAF, do Transporte ao REVO os riscos do apagão



A USAF é, por larga margem, a maior força aérea do mundo, mas isso também significa que suas demandas de REVO (reabastecimento em voo) e transporte aéreo são igualmente imensas, o que se reflete na sua enorme quantidade de aeronaves de transporte. Apesar dos números impressionantes que a mesma exibe, um olhar mais atento revela dificuldades que precisam ser sanadas com grande urgência, porém, nem o relógio, nem o orçamento ajudam.

Primeiramente, vamos a algumas definições. Na nomenclatura da USAF, “K” (Kilo) representa a capacidade de transferir combustível, ou seja, um tanker (“avião cisterna” em algumas nomenclaturas). Por exemplo, o C-130 é uma aeronave de transporte que não é capaz de transferir combustível a outras aeronaves (ou seja, não é um tanker), mas a variante KC-130, fruto da modificação no C-130 padrão, o qual recebe diversos sistemas específicos para atender essa capacidade, é capaz de realizar o REVO.

Embora as definições sejam de certa forma arbitrárias, e por vezes chegam a se confundir, pode-se definir uma aeronave de transporte tático como sendo aquela de menor capacidade, geralmente medida em termos de capacidade de carga e alcance, as quais operam mais próximo ao campo de batalha, enquanto que o transporte estratégico, envolve aeronaves maiores e mais capazes, mas que também demandam uma infraestrutura mais elaborada, o que impede tais aeronaves de operar muito próximo a linha de frente.

No momento, a USAF opera uma frota com aproximadamente 500 aeronaves, 397 das quais são exemplares do vetusto KC-135 e 12 dessas aeronaves do KC-46 Pégasus, os quais possuem limitações para cumprir missões REVO (este o foco deste artigo); mas todos são capazes de realizar missões de transporte e operam a logística norte americana.

Além das aeronaves REVO, a USAF opera em torno de 400 aeronaves de transporte tático, das quais cerca de 300 são variantes do mítico C-130 Hércules. Mas sua real força reside nos transportadores estratégicos, contando com os monstruosos C-5 Galaxy (52 unidades) e sua espinha dorsal sendo composta pelo C-17 Globemaster III (222 unidades).


O C-5 tem um compartimento de carga muito volumoso, que somado à sua capacidade, pode carregar quase 128 toneladas, o que faz dele uma aeronave essencial à USAF. Embora o C-17 carregue menos cargas (77,5 ton) e com volumes menores que o C-5, ele pode operar em pistas mais rústicas, o que o torna insubstituível em determinados teatros de operação.

Em um primeiro momento, pode parecer que tudo está bem. Mas há problemas, alguns bastante sérios, e no momento não está claro como, ou se, a USAF resolverá tais problemas sem reduzir sua capacidade operacional.


Para começar, na aviação de transporte tático, boa parte dos "Hércules" são de versões mais antigas e não da mais avançada C-130J "Super Hércules". Como os últimos C-130H e os primeiros C-130J foram entregues para a USAF em 1996, boa parte da força tem mais de 30 anos de bastante uso. Entretanto, como o C-130J tem apresentado bons resultados em serviço, é relativamente simples para a USAF substituir os C-130 mais antigos pelos “Juliet”, então é mais uma questão de cronograma e orçamento do que técnica.

No caso dos transportadores estratégicos a situação também é complicada, pois o C-5 deixou de ser fabricado em 1989 e o C-17 em 2015. O C-5 tem um triste histórico de problemas ao longo da vida útil, mas sua enorme capacidade de carga é, por vezes, a única solução disponível. Voltaremos a esse ponto na próxima parte.

No caso da frota REVO, a situação é ainda mais dramática. Embora numerosa, quase 80% da frota é composta pelo KC-135, que deixou de ser fabricado em 1965. Apesar de ter sido modernizado diversas vezes, e mesmo sendo uma aeronave muito capaz, a idade começa a pesar, e muitos KC-135 estão chegando ao fim da vida útil das células. Com o KC-10 a situação é um pouco melhor, tendo sido produzido até 1987. Isso nos leva ao KC-46, cuja história tem sido bastante conturbada.


PROGRAMA KC-X

Os veteranos KC-135 se aproximam do fim de seu ciclo de vida
A USAF está bem ciente das deficiências de REVO mencionadas acima, e já no início dos anos 2000 lançou estudos para substituir 100 dos KC-135 mais antigos.

A militarização, que é o processo de adaptar uma aeronave civil para uso militar, não é nada simples. A primeira opção da USAF foi o leasing de aeronaves KC-330 MRTT (Multi-Role Tanker e Transport), derivados do Airbus A330 civil através de um processo de militarização, mas considerou que os custos e riscos técnicos eram muito altos, pois naquela época a Airbus tinha pouca ou nenhuma experiência com militarização de aeronaves civis em tankers.

A próxima iniciativa da USAF, em 2002, foi o leasing do KC-767, derivados dos Boeing 767 civil (o maior rival do A330), mas o Congresso acabou cancelando os trabalhos em 2006, pois o leasing foi considerado pouco eficaz do ponto de vista econômico. Tanto o A330 MRTT como o KC-767 acabaram sendo adotados por vários países, conforme este artigo do GBN: (REVO e Transporte de longo alcance - Conheçam as soluções para lacuna na FAB).

Em 2007, a USAF lançou uma RFP (solicitação de propostas, via de regra o primeiro passo em uma concorrência) para o KC-X. Airbus (em parceria com a Northrop Grumman) e Boeing responderam ao RFP com propostas atualizadas do KC-330 MRTT e KC-767. A proposta da Airbus foi declarada vencedora em fevereiro de 2008, mas a Boeing recorreu da decisão poucos dias depois alegando problemas na RFP, e o GAO (equivalente ao TCU) ordenou à USAF que refizesse a competição já em junho de 2008. Embora o DoD (equivalente ao Ministério da Defesa) tentasse fazer uma “licitação relâmpago” para resolver o impasse ainda em 2008, acabou por cancelar o KC-X.

Em 2009 o KC-X foi lançado novamente, desta vez com a RFP devidamente corrigida, e além da Boeing e da Airbus, houve um terceiro concorrente, a US Aerospace/Antonov, oferecendo o Antonov An-112 (derivado com motores a jato do An-70). Após uma série de “trapalhadas”, que incluiu a eliminação da US Aerospace/Antonov por minúcias técnicas, a proposta da Boeing foi escolhida em fevereiro de 2011, conforme relatado pelo GBN (KC-46A NewGen Tanker da Boeing é o novo reabastecedor da USAF). A proposta da Boeing era tão agressiva financeiramente que a Airbus preferiu não recorrer, alegando que havia um sério risco de prejuízo econômico se o fizesse.

O CDR (revisão crítica do design) só foi concluído em 2013, como relatado à época pelo GBN (USAF conclui revisão de projeto do KC-46 Tanker). O primeiro voo do KC-46A foi em 28 de dezembro de 2014.

Além da demora de quase 10 anos até a escolha do KC-46, diversos problemas técnicos na fase de desenvolvimento, muitos relacionados à militarização em si, estão se mostrando difíceis de resolver. Uma falha no sistema de retenção de cargas levou a USAF a proibir a operação da aeronave no transporte de cargas entre setembro e dezembro de 2019, mas a falha de projeto já foi resolvida.

Mas dois outros problemas estão se mostrando mais difíceis de resolver, como as falhas no RVS (sistema de visão remota), que o GBN explicou em mais detalhes: (KC-46 coloca em risco capacidade de REVO da USAF), e o recente anúncio em 31 de março de 2020 de problemas com vazamento de combustível da haste (probe) de transferência de combustível, sendo graves o bastante para serem consideradas como Categoria 1.

Categoria 1 descreve uma classe de defeitos graves o bastante para impedir ou limitar seriamente a capacidade da aeronave de efetuar missões relacionadas a tal sistema. Uma aeronave em desenvolvimento que apresente um defeito Categoria 1 não pode atingir a IOC (Capacidade Inicial de Operação, em que a aeronave é liberada para usos reais limitados).

O KC-46 deveria ter obtido IOC já em 2017, mas estamos em abril de 2020 e ainda não há uma data fixada para ser emitida a IOC, principalmente em função dos problemas com RVS e de transferência de combustível.

Como o contrato do KC-X impõe à Boeing que arque com os custos referentes a atrasos, o maior problema não é o econômico, mas o cronograma em si. O fato de a USAF já ter programado para 2021 a retirada do serviço ativo de 13 dos seus KC-135 e outros 10 exemplares do KC-10, significa que o problema é muito urgente, podendo impactar seriamente nas capacidades operacionais de diversos meios da USAF.

Para complicar ainda mais a situação, o programa de substituição do KC-10, o KC-Z, ainda não saiu do papel; a Boeing propôs um derivado do Boeing 777 para a função. Falamos mais sobre o KC-777, e um pouco sobre o KC-46 e o A330 MRTT em artigo publicado aqui no GBN: (REVO e Transporte de longo alcance - Conheçam as soluções para lacuna na FAB).

O provável competidor do KC-777 seria um Airbus A350 com o pacote MRTT; o A350 é o maior rival do 777 no mercado civil.


CONCLUSÃO

Os constantes atrasos do KC-46 devem começar a prejudicar a USAF já em 2021, como explicado na 1ª parte. E embora a recente troca na diretoria da Boeing, motivada em grande parte pelos problemas do 737 Max, tenha mostrado bons resultados até o momento, o KC-46 continua apresentando problemas graves, e é improvável que a aeronave atinja o IOC até 2021. Resta à USAF esperar pelo melhor, e à Boeing correr contra o relógio para evitar um apagão em suas capacidades de projeção de longo alcance com apoio de REVO, além das limitações em suas capacidades de transporte estratégico da USAF.



Por: Renato Marçal

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