sexta-feira, 8 de maio de 2020

Quando a vitória sobre o nazismo não significa libertação


Com a morte da geração que vivenciou pessoalmente a guerra, infelizmente perde força a convicção de que ela é parte do passado da Europa, mas não deveria, em circunstância alguma, fazer parte do futuro do continente. 

Em maio do ano passado, uma pesquisa de opinião encomendada pelos ministros do Exterior da União Europeia revelou que os europeus de 18 a 24 anos de vários Estados-membros são os mais propensos a acreditar que será possível uma guerra entre nações europeias nos próximos 10 a 20 anos. Esta informação marcou definitivamente o fim do "pós-guerra" – mesmo antes da chegada do coronavírus à Europa.

"Talvez a razão pela qual nunca aprendamos com a história seja nossa incapacidade de imaginar a realidade da guerra e suas consequências", escreveu o poeta americano Charles Simic. "E isso por causa do medo de que, se o fizéssemos, deixaríamos de acreditar em Deus e no nosso semelhante."

75 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, não haverá grande celebração deste evento em nenhuma capital europeia por causa da covid-19. Mas não é apenas o coronavírus que aflige a Europa, é também o vírus do revisionismo histórico. O que estamos testemunhando na Rússia e em alguns países do Leste Europeu é um armamento da memória da guerra. É considerado crime rejeitar a visão do governo.

Na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima. No caso de guerras sobre a memória histórica, a primeira vítima é a complexidade. Na guerra de propaganda da Segunda Guerra Mundial, nem a Rússia nem alguns dos governos do Leste Europeu fizeram uma boa figura.

Na visão oficial do Kremlin, qualquer um que argumente contra a ocupação soviética da Europa Oriental após 1945 é um fascista. E qualquer crítica às políticas de Stalin é vista como uma tentativa deliberada de diminuir o papel decisivo do Exército Vermelho na vitória sobre Adolf Hitler. Em vários Estados do leste da Europa, a reação a isso é tomar a visão exatamente oposta da história: todos os que lutaram contra os soviéticos, até mesmo os aliados dos nazistas, são enaltecidos como heróis.

Mas a História é mais complexa. Como o diretor da Fundação Buchenwald, Volkhard Knigge, disse à filósofa americana Susan Neiman, autora do livro Aprendendo com os Alemães, para que uma narrativa em preto e branco fosse verdadeira "seria preciso ter um campo de concentração sem comunistas e um campo soviético sem nazistas". Mas Buchenwald, que os nazistas construíram como um campo de concentração no Terceiro Reich e que se tornou um campo soviético depois da guerra, é o melhor exemplo de como campos politicamente corretos não são nada além de ficção.

Mas o reconhecimento dessa complexidade não significa que ambos os lados da guerra estejam igualmente errados sobre a memória histórica. O Kremlin pode, com razão, insistir para que as vítimas do povo soviético sejam reconhecidas. Mas a entonação neste caso deve ser em "soviético, ao contrário de "russo". Pois milhões de ucranianos, georgianos e pessoas da Ásia Central morreram lutando contra Hitler. Em Belarus, um em cada três habitantes não sobreviveu à guerra.

As guerras costumam ser travadas por causa de territórios. Guerras de memória são travadas por causa do significado de palavras. E as atuais guerras de memória russo-ucraniana, russo-polonesa ou russo-tcheca são sobre o significado da palavra "libertação".

Em 1985, o então presidente alemão Richard von Weizsäcker fez história ao declarar o dia 8 de maio como o dia da libertação da Alemanha. Ele disse a seus compatriotas ser verdade que os alemães também haviam sofrido muito durante a guerra e que foram cometidas injustiças com eles após a guerra. Mas que os alemães não teriam o direito de se considerar vítimas porque foram responsáveis pelo imensurável sofrimento de outros e pelo Holocausto. Além disso, os alemães deveriam ver o fim da guerra como "libertação". A Alemanha pode ter perdido a guerra, mas, como resultado, ganhou sua liberdade. E o que conta não é a vitória, mas a liberdade.

É esta lição dos alemães que até hoje não foi compreendida pelo Kremlin. Pois é exatamente isso que distingue a Europa Central e Oriental da Europa Ocidental quando se trata do fim da Segunda Guerra Mundial: os europeus-orientais não puderam declarar o dia 8 de maio de 1945 como o dia da sua libertação. Embora a chegada do Exército Vermelho tenha sido uma vitória sobre a Alemanha nazista, ele não libertou esses países.

O presidente Vladimir Putin não quer aceitar que o fato de milhões de soviéticos terem morrido ao serem expulsos pelos nazistas da Europa Oriental não dá a Moscou o direito de decidir quando os países do Leste Europeu devem celebrar sua libertação. O sacrifício dos soldados soviéticos exige respeito, e qualquer tentativa de diminuir o papel da União Soviética na derrota de Hitler equivale a um revisionismo histórico. Mas os monumentos aos marechais e tanques soviéticos não podem ser chamados de monumentos aos libertadores porque as sociedades da Europa Oriental não os consideram como tal.

Não foram os Aliados, mas o presidente alemão que, 40 anos após o fim da guerra, declarou o dia 8 de maio como o dia da libertação para os alemães. E são os próprios europeus-orientais que decidem qual dia consideram como o de sua libertação.


O cientista político búlgaro Ivan Krastev é chefe do Centro de Estratégias Liberais em Sófia e membro do Instituto de Ciências Humanas de Viena. O especialista recebeu neste ano o Prêmio Jean Améry da editora Klett-Cotta e da Allianz Kulturstiftug.


Fonte: Deutsche Welle

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