domingo, 22 de junho de 2025

Análise - Os Riscos da Derrubada do Regime Iraniano sem Coesão Interna

A possibilidade de uma derrubada do regime iraniano tem ganhado relevância nos debates geopolíticos internacionais, impulsionada por interesses estratégicos, conflitos regionais e tensões globais. Contudo, ao analisar a viabilidade e as possíveis consequências de uma mudança forçada de governo no Irã, é imprescindível considerar as lições aprendidas ao longo das últimas duas décadas no Oriente Médio e na Ásia. Intervenções externas e a derrubada abrupta de regimes políticos, na ausência de um processo interno legítimo, têm resultado, na maioria dos casos, em instabilidade prolongada, sofrimento humano e retrocessos políticos e sociais de grande magnitude.

Esta análise busca apresentar os riscos associados a qualquer tentativa de mudança de regime no Irã sem uma coesão interna efetiva, abordando a complexidade do cenário político iraniano, a "neblina" que envolve suas dinâmicas de poder e as possíveis consequências para a estabilidade regional e global. Para isso, serão utilizados como referência os casos do Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, exemplos emblemáticos que ilustram os perigos de uma mudança de regime conduzida sem planejamento, legitimidade ou suporte interno.

Coesão Interna: Um Pilar Essencial para Mudanças Sustentáveis

Coesão interna refere-se à capacidade de um país ou regime político de manter, ao menos minimamente, um consenso social, estabilidade institucional e organização política que assegurem a governabilidade e a ordem social. Esse conceito abrange fatores políticos, sociais, militares e culturais, incluindo a legitimidade das lideranças, o alinhamento entre grupos internos e o funcionamento das instituições estatais.

Mudanças políticas, especialmente aquelas que envolvem substituição de regimes, dependem, de maneira crucial, dessa coesão interna para evitar o caos e o colapso institucional. Na ausência desse elemento, os riscos de fragmentação territorial, surgimento de milícias armadas, guerras civis e colapsos humanitários tornam-se altamente prováveis, como demonstram os exemplos históricos que serão analisados a seguir.

A Neblina do Poder no Irã

Diferentemente de outras nações, o Irã é caracterizado por uma considerável opacidade em relação às suas dinâmicas internas de poder. O sistema político iraniano é multifacetado, com uma teocracia liderada pelo Aiatolá Supremo, coexistindo com estruturas políticas formais como a presidência da República, o parlamento (Majles) e, principalmente, a poderosa Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC).

Essa “neblina” dificulta o entendimento de quem, de fato, detém o controle pleno do país, quais as reais divisões internas existentes e quais seriam as forças emergentes em caso de um eventual colapso do regime atual. A ausência de um movimento de oposição interno, forte e organizado, agrava essa incerteza.

Especialistas destacam que a falta de uma força interna coesa torna a derrubada do regime por vias externas altamente improvável de alcançar sucesso duradouro. Mesmo que o regime fosse derrubado, o futuro político do país permaneceria incerto e poderia, inclusive, resultar em uma escalada de instabilidade.

Afeganistão: A Complexidade da Reconstrução Pós-Intervenção

Após os ataques de 11 de setembro de 2001, a coalizão liderada pelos Estados Unidos derrubou rapidamente o regime do Talibã, então abrigando a Al-Qaeda. Embora os primeiros anos tenham apresentado avanços notáveis em direitos humanos, infraestrutura e educação, o fracasso no médio e longo prazo é emblemático.

Entre os principais fatores que contribuíram para esse desfecho estão:

  • A falta de um planejamento integrado entre os atores internacionais, que desconsideraram as tradições locais e a complexidade das estruturas sociais afegãs;

  • Divergências internas entre os aliados ocidentais quanto às estratégias militares, políticas e de desenvolvimento;

  • A ausência de um consenso político interno sólido, resultando em governos frágeis, dependentes de ajuda externa e com baixa legitimidade social.

Como consequência, o Talibã retornou ao poder em 2021, revertendo muitos dos avanços obtidos e instaurando um regime autoritário, com graves violações de direitos humanos.

Este episódio reforça a lição de que uma mudança de regime sem base interna legítima, por mais bem-intencionada que seja, tende a produzir retrocessos dramáticos.

Iraque: Desintegração Institucional e Ascensão do Extremismo

A invasão do Iraque em 2003, que resultou na queda de Saddam Hussein, foi conduzida sem um planejamento adequado para o período pós-invasão. A dissolução do exército e da burocracia estatal gerou um profundo vácuo institucional.

Esse vazio abriu espaço para o agravamento das tensões sectárias entre xiitas, sunitas e curdos, culminando em uma prolongada guerra civil. No vácuo de poder, surgiu o Estado Islâmico (EI), que implantou um regime de terror e genocídio em vastas áreas do país e da Síria.

Mesmo após anos de esforços militares e reconstrução, o Iraque ainda enfrenta instabilidade política, violência esporádica e enormes desafios institucionais.

Esse caso evidencia que a imposição de um novo regime, sem uma compreensão profunda das divisões sociais, religiosas e políticas locais, pode desmantelar estruturas estatais já frágeis e abrir caminho para o extremismo.

Líbia: Fragmentação e Guerra Civil Prolongada

A derrubada de Muammar Gaddafi em 2011, com forte participação de potências estrangeiras, ilustra mais um exemplo de mudança de regime sem um plano claro de reconstrução.

Sem um governo central legítimo e estável, a Líbia mergulhou em um ciclo de violência entre milícias rivais, com a existência de governos paralelos e a presença de grupos terroristas.

O colapso do Estado líbio resultou em uma grave crise humanitária, com contínuas violações dos direitos humanos, tráfico de pessoas e uma instabilidade política que persiste até os dias atuais.

Síria: Uma Transição Fragilizada por Violência e Crise Humanitária

Desde a saída de Bashar al-Assad em 2024, a Síria tem enfrentado um processo de transição extremamente frágil. O país, devastado por mais de uma década de guerra civil, continua sofrendo com massacres de civis, deslocamentos massivos, destruição de infraestrutura e uma crise humanitária de grandes proporções.

A fragmentação política e a ausência de um consenso interno tornaram a reconstrução um desafio quase intransponível, deixando o país vulnerável à influência de potências externas e a grupos armados diversos.

Os Riscos Específicos para o Irã

No caso iraniano, a ausência de um movimento interno robusto e organizado capaz de liderar uma transição representa um fator crítico de risco.

A Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC), com sua vasta influência política, econômica e militar, é um ator que não pode ser ignorado. Caso o atual regime desmorone sem um processo bem estruturado de transição, existe a possibilidade de que a IRGC assuma o controle político de forma ainda mais centralizada e agressiva, com possíveis implicações negativas para a segurança interna e regional.

Além disso, um colapso abrupto pode gerar um vácuo de poder, levando à fragmentação territorial, à proliferação de grupos armados e à intensificação de disputas internas entre diferentes etnias e facções políticas.

Como o Irã desempenha um papel estratégico no Oriente Médio, a instabilidade interna teria efeitos colaterais diretos nos países vizinhos, podendo desencadear novos fluxos migratórios, aumento de tensões sectárias e interferência de potências regionais e globais como Estados Unidos, Rússia, China e Arábia Saudita.

Violação da Soberania e do Direito Internacional

A soberania nacional é um dos princípios mais fundamentais do direito internacional, consagrado em documentos como a Carta das Nações Unidas. Ela garante aos Estados o direito exclusivo de gerir seus assuntos internos, definir seu sistema político e manter sua integridade territorial sem interferências externas.

Qualquer tentativa de promover uma mudança de regime no Irã por meio de intervenção militar ou ações coercitivas externas representaria uma violação direta desse princípio. Além de contrariar as normas jurídicas internacionais, tal ação comprometeria profundamente a legitimidade de qualquer novo governo que viesse a ser instaurado.

Historicamente, intervenções dessa natureza tendem a reforçar o sentimento nacionalista entre a população local, gerando resistência interna e dificultando a aceitação de qualquer mudança imposta de fora.

A comunidade internacional, em sua maioria, demonstra forte oposição a tais práticas, o que poderia isolar politicamente qualquer tentativa de intervenção e inviabilizar esforços posteriores de reconstrução e estabilização.

Além disso, a violação da soberania de um país tão estratégico quanto o Irã abriria precedentes perigosos, incentivando outros Estados ou blocos a adotarem políticas semelhantes, aumentando o risco de novos conflitos internacionais.

O Caminho da Mudança Legítima e Sustentável

As lições extraídas das experiências no Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria indicam que mudanças de regime conduzidas sem coesão interna, legitimidade e planejamento cuidadoso são, quase sempre, acompanhadas de consequências imprevisíveis e, muitas vezes, desastrosas.

É importante ressaltar que esta análise, embora crítica a uma intervenção externa, não deve ser interpretada como um apoio ou defesa ao atual regime iraniano. As preocupações legítimas com a situação dos direitos humanos, as restrições às liberdades civis e o contexto político repressivo no Irã são reconhecidas e não podem ser ignoradas.

Entretanto, qualquer transformação política que se pretenda duradoura, legítima e benéfica para o povo iraniano deve ser fruto de processos internos, amplamente apoiados pela população, conduzidos de forma pacífica e com o fortalecimento das instituições.

Esse caminho, embora mais lento e repleto de desafios, é o único capaz de assegurar uma mudança real e sustentável, que respeite a soberania nacional, contribua para a estabilidade regional e, acima de tudo, atenda às aspirações legítimas do povo iraniano por democracia, liberdade e desenvolvimento social.


por Angelo Nicolaci


GBN Defense - A informação começa aqui


Share this article :

0 comentários:

Postar um comentário

 

GBN Defense - A informação começa aqui Copyright © 2012 Template Designed by BTDesigner · Powered by Blogger