As pinturas sobre a Proclamação da Independência, em geral retratam o Grito do Ipiranga com pompa e solenidade, a história, porém, registra que aconteceu em lombo de burro, ao final de uma longa e cansativa viagem. Nada disso diminui a importância do ato: o Brasil tornava-se independente. Conforme a ilustração que encontrei na internet, feita por outro autor, esse momento continua sendo símbolo de um marco político decisivo, embora mais humano e simples do que os quadros acadêmicos costumam mostrar.
Hoje, 7 de setembro de 2025, volto ao texto que escrevi em 2017 e trago aqui uma versão ampliada, mais densa e reflexiva, sem concessões à nostalgia fácil, onde quero aprofundar a pergunta que não envelhece: "Até que ponto somos realmente independentes?" Ao revisitar o caminho histórico que nos trouxe do Ipiranga até hoje, procuro não apenas recontar fatos já sabidos, mas examinar continuidades, contradições e decisões políticas que moldaram, e ainda modelam, a condição estrutural do país. Esta é uma leitura crítica, feita a partir da história para iluminar o presente e projetar alternativas possíveis para um futuro genuinamente soberano.
O episódio simbólico que chamamos de Independência aconteceu em 7 de setembro de 1822, quando Dom Pedro proclamou o rompimento formal com Portugal às margens do Ipiranga. A data é inegavelmente um marco político e de identidade; contudo, a proclamação por si só não alterou de imediato as bases materiais da sociedade brasileira. A documentação e as narrativas divulgadas pelas enciclopédias e dossiês históricos confirmam o caráter político e constitutivo desse gesto e a consagração de Dom Pedro I como o primeiro imperador do Brasil, mas também mostram que o reconhecimento internacional do novo Estado ocorreu de forma escalonada: os Estados Unidos estabeleceram relações oficiais em 1824 e a ratificação por Portugal veio apenas com o Tratado do Rio de Janeiro, em 1825.
Antes de oferecer qualquer romantismo, é preciso lembrar que as transformações que tornaram possível o 7 de setembro foram prévias e paradoxais. A vinda da família real para o Rio de Janeiro em 1808, e a abertura dos portos brasileiros a nações amigas romperam o pacto colonial que durante séculos havia delimitado a economia do território. Ao abrir os portos, Dom João VI alterou profundamente as relações econômicas entre Brasil, Portugal e potências emergentes, especialmente a Grã-Bretanha, cujos interesses industriais e comerciais encontraram no território brasileiro mercados e matérias-primas a explorar. Aquela data e suas medidas preparatórias não apenas aproximaram o Brasil de um comércio global moderno como também deslocaram as linhas de dependência: a tutela portuguesa perdeu força, mas as condições favoreciam agora a expansão da presença britânica nos negócios e na política econômica da jovem nação.
A sequência de eventos entre 1808 e 1825, o “Dia do Fico”, a convocação da Assembleia Constituinte e o grito do Ipiranga, indicam que a independência foi menos uma erupção popular espontânea e mais o resultado de arranjos políticos que acomodaram interesses de elites. O “Fico” não foi um gesto popular, foi a manifestação de um príncipe que, pressionado por distintas forças, a elite agrária brasileira, que temia a recolonização e setores liberais que demandavam autonomia jurídica e comercial, optou pela permanência que serviria de ponte para a nova ordem política. José Bonifácio e outros líderes da independência ofereceram o conteúdo político e jurídico para que essa transição ocorresse, mas a forma social permaneceu essencialmente a mesma: latifúndio, monocultura e escravidão. A ruptura foi política; a reprodução das elites e dos privilégios foi preservada.
Quando falamos de independência, portanto, precisamos distinguir formas: há a independência protocolar e internacional, quando somos reconhecidos por outros Estados, assinamos tratados e colocamos a bandeira em representações diplomáticas, e há a independência material e estrutural, que diz respeito à capacidade real de autodeterminação econômica, tecnológica e cultural. Neste segundo aspecto a história mostra que o Brasil saiu da condição de colônia e entrou, na prática, em um novo tipo de dependência. O Tratado de 1825 formalizou o reconhecimento por Portugal, mas impôs ao Brasil a obrigação de pagar uma compensação equivalente a dois milhões de libras esterlinas, operação que teve de ser intermediada por credores britânicos e que simbolizou, desde o início, a inserção do Brasil em uma ordem financeira internacional que ditaria seus rumos econômicos por décadas. Essa dívida e as relações comerciais que se seguiram não foram neutralidades técnicas: definiram padrões de dependência.
Dizer que a independência foi incompleta não é polemizar com a história oficial, é reconhecer uma sequência causal que vai do pacto colonial ao tipo de modernização que a elite brasileira aceitou. Enquanto nações avançavam por rotas industriais, urbanas e públicas de bem-estar estruturadas por investimentos estatais e por alianças estratégicas com setores produtivos nacionais, aqui prevaleceu uma opção que privilegiou a manutenção do latifúndio exportador e a subordinação a capitais estrangeiros. A consequência imediata foi dupla: após 1822 o Brasil consolidou a unidade territorial, o que foi importante, mas não rompeu com o padrão de concentração de renda, poder e terra. Isso determinou, ao longo do século XIX e XX, que a modernização econômica ocorresse de maneira desigual e dependente de decisões externas. A leitura crítica não busca negar as vitórias e as singularidades históricas, mas apontar que soberania e riqueza só se consolidam quando políticas públicas, capacidade tecnológica e coesão social são construídas de modo duradouro.
Chegando ao tempo presente, é impossível não conectar esses traços históricos com os problemas mais agudos que marcam a nossa condição: importamos tecnologia, dependemos de cadeias globais para bens de alto valor agregado, temos déficits crônicos em pesquisa aplicada e inovação que comprometem nossa autonomia estratégica. A dependência tecnológica é, em boa medida, o “calcanhar de Aquiles” que impede uma liberdade prática; sem domínio sobre componentes centrais da infraestrutura digital, energia, defesa e biotecnologia, uma nação rica em recursos naturais e humanos segue vulnerável. Hoje é necessário enfrentar essa vulnerabilidade com políticas coerentes que integrem educação superior, investimento público-privado em P&D, e estratégias industriais que coloquem o Brasil em cadeias de valor com maior captura de renda e capacidade de comando tecnológico.
Mas a afirmação de soberania envolve também a ética pública e o comportamento social. O arranjo que consagrou a independência formal manteve institutos e hábitos que perpetuaram a desigualdade e a captura política. Até hoje, quando olhamos para estruturas de poder que resistem a reformas necessárias, reforma agrária efetiva, tributação progressiva, fortalecimento de instituições públicas, percebemos que a independência plena será mais difícil enquanto setores que se beneficiam do status quo mantiverem poder desproporcional. Isso não é determinismo, é diagnóstico político.
A reflexão crítica exige apontar saídas. Primeiro, autonomia tecnológica não é slogan, tem que ser projeto de Estado. Requer políticas industriais, fundos públicos de longo prazo para pesquisa (com governança profissionalizada e metas claras), estímulos à cooperação universidade-empresa, e aquisição estratégica de capacidades em setores como semicondutores, comunicações seguras, infraestrutura crítica e defesa. Segundo, soberania econômica passa por reconfigurar nossas exportações, agregando valor no país em vez de vender apenas commodities. Terceiro, soberania social significa reduzir desigualdade por meio de educação pública de qualidade, saúde universal e mecanismos redistributivos que devolvam poder aos que hoje estão à margem. Quarto, soberania política demanda transparência, reforma do sistema político-eleitoral e fortalecimento do Estado de direito para que políticas estratégicas possam ser adotadas sem serem facilmente revertidas por arranjos partidários efêmeros.
As transformações que proponho não são simples. Exigem coerência de longo prazo e, acima de tudo, pactos amplos que superem a fragmentação política e a visão curta do curto prazo eleitoral. É necessário também recuperar uma cultura cívica que combine direitos com deveres: não como moralismo, mas como compreensão de que a estabilidade e o desenvolvimento sustentáveis exigem um contrato social mais forte.
Há ainda uma dimensão geopolítica inevitável. No sistema internacional contemporâneo, o poder econômico e a tecnologia se entrelaçam com a segurança. A experiência histórica mostra que os países que alcançaram autonomia fizeram escolhas públicas estratégicas: investimento estatal seletivo, proteção temporária a indústrias nascente, formação de elites técnicas e formação de capacidade para projetar poder quando necessário. Não falo de militarização, falo de capacidade nacional de decisão. Hoje, com novas rivalidades globais e disputas tecnológicas crescentes, a capacidade de fiscalizar e proteger ativos estratégicos desde a infraestrutura digital até o espaço marítimo, é parte da soberania efetiva.
Ao longo do século XIX e XX, e nas crises recentes, o Brasil mostrou poder de adaptação e reservas de iniciativa. Há indústria, universidades, ciência de ponta e talentos imensos. A questão é como alinhar esses recursos com um projeto de longo prazo que supere ciclos de políticas curtas e interesses patrimonialistas. Podemos, por exemplo, combinar um programa robusto de educação técnica com liberdade para startups e apoio público dedicado a plataformas de inovação que respondam a demandas estratégicas do Estado. Podemos também fortalecer a cooperação regional para ampliar mercados e reduzir a dependência de atores externos isolados.
Finalmente, há um ponto moral e cívico: a independência é também uma tarefa de cidadania. A história ensina que regimes e elites se reproduzem não apenas porque controlam armas e capitais, mas porque culturas políticas de passividade e conformismo permitem que o poder permaneça concentrado. A cobrança por responsabilidade pública, o engajamento eleitoral informado e a pressão por políticas que efetivamente convertam recursos naturais em bem-estar social são instrumentos de emancipação tão cruciais quanto navios, aeronaves e fábricas.
Não pretendo com isso fechar uma lista de receitas fáceis. O que proponho é clareza: celebrar o 7 de setembro exige mais do que desfilar e repetir palavras de soberania; exige, sobretudo, ocupar o tempo entre um feriado e outro com decisões que mudem a correlação de forças e que coloquem o país numa rota de maior autonomia e justiça. Reivindicar independência significa construir instituições capazes, educar uma população crítica e investir em capacidade tecnológica e produtiva. Significa, ainda, enfrentar interesses consolidados que vivem da dependência e que lucram com a manutenção do status quo.
Ao revisitar o texto escrito em 2017, mantenho a convicção de que o 7 de setembro precisa ser mais do que memória, precisa ser provocação. Que este dia, em vez de confortar nossa complacência, nos desafie a transformar a herança da independência formal numa trajetória real de emancipação. O Brasil pode ser grande não apenas por sua geografia ou recursos, mas pela qualidade de suas escolhas políticas e pela capacidade coletiva de construir um futuro de autonomia responsável.
Se há heróis na história, e existem muitos, que o legado deles nos inspire não a repetir gestos simbólicos, mas a empreender a difícil obra de traduzir soberania em vida concreta. Que a independência que tanto louvamos seja, enfim, um projeto coletivo de reconstrução institucional, de justiça social e de desenvolvimento tecnológico. Sem isso, continuaremos convidando o mundo a nos ver apenas como um mercado ou um celeiro de recursos, em vez de reconhecer nossa real capacidade de nação autônoma.
Por Angelo Nicolaci — jornalista, editor do GBN Defense, graduando em Relações Internacionais pela UCAM, especialista em geopolítica e assuntos de defesa e segurança.
GBN Defense - A informação começa aqui
7
Fontes de referência consultadas para esta revisão: Britannica (história da independência do Brasil e biografia de Dom Pedro I); Oxford/entradas históricas sobre a abertura dos portos de 1808; registros do Tratado do Rio de Janeiro (1825) e análises sobre os termos do reconhecimento internacional e da indenização; arquivos do Departamento de História dos Estados Unidos sobre o reconhecimento diplomático dos EUA a partir de 1824; sínteses acadêmicas sobre a continuidade das estruturas socioeconômicas brasileiras após 1822.
0 comentários:
Postar um comentário