O Chifre da África, situado na encruzilhada entre o Mar Vermelho, o Golfo de Áden e o Oceano Índico, é um território marcado por contradições: instabilidade política, pobreza e conflitos internos, mas também por uma posição geográfica que o torna um dos espaços mais disputados do planeta. Por suas águas circula até 15% do comércio marítimo global, incluindo uma fração essencial do petróleo e gás que abastece Europa e Ásia. Essa relevância explica por que, desde o período colonial, a região se tornou objeto de cobiça internacional, primeiro por potências europeias, depois por blocos da Guerra Fria, e hoje por uma miríade de atores estatais e privados.
Djibuti, Somália, Eritreia e Etiópia não são apenas Estados frágeis ou instáveis: são peças em um tabuleiro maior, em que a segurança das rotas marítimas, o acesso a portos e a projeção militar definem o equilíbrio global.
Atores globais e suas estratégias
Estados Unidos: contenção e manutenção da ordem marítima
Os EUA operam em Djibuti com a Camp Lemonnier, única base militar americana permanente no continente africano, essencial para operações antiterrorismo, missões com drones e controle de fluxos marítimos. A 5ª Frota, baseada no Bahrein, garante alcance no Mar Vermelho e no Índico, assegurando liberdade de navegação contra pirataria, terrorismo e ameaças estatais. Washington vê a região como pilar de contenção à China, Rússia e Irã.
China: infraestrutura como vetor de poder
Pequim escolheu Djibuti para sua primeira base militar ultramarina, inaugurada em 2017. Sua presença naval, apoiada pela Iniciativa do Cinturão e Rota, garante logística para operações no Índico e proteção de rotas comerciais até o Mediterrâneo. Além de infraestrutura portuária, a China fornece crédito, constrói ferrovias (como a linha Djibuti-Adis Abeba) e busca criar dependência econômica. Sua estratégia é de poder combinado: influência financeira, diplomática e militar.
Rússia: o retorno às águas quentes
Moscou, ainda limitada por sanções e restrições financeiras, busca acordos de uso portuário em Sudão (Porto de Suakin), Eritreia e possivelmente Djibuti. O objetivo é estabelecer bases navais permanentes para ampliar a presença no Índico e no Mar Vermelho, em um esforço para retomar protagonismo global. A Rússia se apoia em parcerias militares (fornecimento de armas e treinamento) e em empresas de segurança privadas, ampliando a pegada de forma flexível e menos custosa.
Türkiye: um novo eixo africano de projeção
A Türkiye consolidou-se como ator relevante no Chifre da África, unindo diplomacia de defesa, cooperação econômica e soft power religioso-cultural. A base turca em Mogadíscio é a maior instalação de treinamento militar de Ancara no exterior, já formando milhares de soldados somalis.
Em 2024, a Türkiye assinou um acordo histórico de 10 anos para ajudar a Somália a controlar seu espaço marítimo, garantindo-lhe autoridade sobre águas territoriais e zona econômica exclusiva, fundamentais para recursos pesqueiros e potenciais reservas de hidrocarbonetos. Isso confere à marinha turca papel central no Golfo de Áden, região crítica para o comércio global e para o combate à pirataria.
Além disso, Ancara firmou diversos acordos de defesa: fornecimento de veículos blindados, drones Bayraktar, treinamento de forças especiais e cooperação tecnológica. Essa rede de compromissos transforma a Türkiye em poder emergente naval no Índico, equilibrando sua posição entre Oriente Médio, Mediterrâneo e África.
Países do Golfo: portos, rivalidades e influência
Os Emirados Árabes Unidos e a Arábia Saudita disputam espaço na região como forma de ampliar seu controle sobre rotas de energia. Abu Dhabi investe em portos e terminais (Somália, Eritreia e Somalilândia), buscando estabelecer um corredor de influência logística. Riad, por sua vez, se ancora em Djidá e busca ampliar presença no Mar Vermelho. Ambos competem entre si, mas também enfrentam o Irã, que vê na instabilidade da região uma oportunidade para enfraquecer rivais.
União Europeia: segurança marítima e migração
A União Europeia atua sobretudo por meio da "Operação Atalanta", de combate à pirataria no Golfo de Áden. Paralelamente, financia projetos de desenvolvimento e fortalecimento institucional, mas seu interesse prioritário é controle migratório. Bruxelas teme que a instabilidade somali e etíope gere novos fluxos de refugiados em direção ao Mediterrâneo.
Capacidades militares e a disputa pelo mar
* Bases navais e aéreas: Djibuti concentra instalações americanas, francesas, japonesas e chinesas, tornando-se um “condomínio militar internacional”.
* Projeção naval: a China expande operações de escolta e reabastecimento; os EUA mantêm superioridade logística e de inteligência; a Turquia desponta como ator regional com projeção crescente.
* Drones e tecnologia: Türkiye e Emirados Árabes têm ampliado o fornecimento de drones armados, alterando o equilíbrio das forças locais.
* Forças de treinamento: Ancara (Somália) e Washington (Djibuti) priorizam formação de tropas locais, enquanto Moscou foca em fornecer armamentos e assessoria militar.
Economia e corredores estratégicos
Além da dimensão militar, há o aspecto econômico. A Somália e o litoral eritreu são potenciais áreas de exploração de gás e petróleo offshore. A Etiópia, sem saída para o mar, depende de portos de Djibuti e busca alternativas com Eritreia e Somália, o que aumenta o peso geopolítico dos corredores logísticos.
China e Emirados controlam ou financiam terminais portuários, enquanto Turquia e Rússia tentam ampliar acesso. O controle dos portos e rotas marítimas é tão valioso quanto a instalação de bases militares: quem domina a logística, domina a economia regional.
O futuro: riscos e oportunidades
O Chifre da África tornou-se um epicentro de competição sistêmica. A região reflete a transição da ordem internacional para um modelo multipolar, em que diferentes potências disputam não apenas presença militar, mas também capacidade de moldar economias e governos locais.
Para os EUA, trata-se de preservar a ordem marítima liberal e conter rivais.
Para a China, é parte da consolidação de sua presença global pela Nova Rota da Seda.
Para a Rússia, é uma chance de retorno às águas estratégicas.
Para a Türkiye, um trampolim para consolidar-se como potência intermediária com alcance oceânico.
Para os Emirados e Arábia Saudita, uma extensão de suas rivalidades no Mar Vermelho.
Para a União Europeia, um amortecedor de crises migratórias.
No entanto, para os países locais, a equação é delicada: como atrair investimentos e cooperação sem se tornarem reféns de potências externas?
Conclusão
O Chifre da África é hoje um laboratório da multipolaridade. Nele se desenrola não apenas a disputa por rotas marítimas, mas também a projeção de influência cultural, tecnológica e militar. É uma região que condensa os dilemas do século XXI: comércio global, segurança energética, disputas estratégicas e fragilidade institucional.
O futuro do sistema internacional passa, inevitavelmente, por estas águas turbulentas. Quem conseguir assegurar presença estável no Chifre da África terá não apenas vantagem sobre rotas marítimas vitais, mas também influência sobre o equilíbrio global.
por Angelo Nicolaci
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