“A rapidez do desenvolvimento tecnológico vai sempre alterá-la… Não podemos tornar a doutrina uma ‘verdade absoluta’.” O General Talles Vilela da Diretoria de Fabricação do Exército Brasileiro, resume em poucas palavras um princípio que define o presente e o futuro das Forças Armadas: a doutrina militar não é uma verdade imutável, mas um organismo vivo, que precisa evoluir com a tecnologia e se adaptar às exigências do campo de batalha.
Hoje, a guerra é muito mais do que confronto de forças. É um espaço em que conhecimento, inovação e capacidade de adaptação se tornaram tão decisivos quanto armas e equipamentos. E é nesse ambiente em constante mudança que a doutrina precisa funcionar como bússola, capaz de orientar sem engessar, de guiar sem perder flexibilidade.
História e tecnologia: quando o novo redefine a guerra
A interação entre tecnologia e doutrina não é novidade. Desde que os homens começaram a organizar forças para a guerra, cada avanço tecnológico forçou ajustes conceituais. Um dos primeiros exemplos modernos é a introdução do tanque na Primeira Guerra Mundial.
Criados para romper o impasse das trincheiras, os carros de combate, conhecidos popularmente como "tanques" inicialmente eram tratados apenas como apoio à infantaria. Mas rapidamente se percebeu que poderiam transformar a guerra terrestre. Países que entenderam isso reorganizaram suas forças, desenvolveram conceitos de guerra mecanizada e investiram em logística e manobra, enquanto os que ignoraram a mudança sofreram graves consequências. Heinz Guderian, estrategista alemão, mais tarde demonstraria como a mobilidade e a concentração de blindados poderiam redefinir o campo de batalha, um conceito que se consolidaria na Blitzkrieg durante a Segunda Guerra Mundial.
Na mesma guerra, mas em outro teatro, o radar mostraria que a informação também é arma. A capacidade de detectar aeronaves e navios além da linha de visão revolucionou a guerra aérea e naval. Países que dominaram essa tecnologia obtiveram vantagem estratégica decisiva, reorganizando defesas e operações ofensivas com base em dados antes impossíveis de coletar. O radar tornou claro que superioridade não dependia apenas do número de plataformas, mas da integração entre ciência, tecnologia e estratégia militar.
Durante a Guerra Fria, novas tecnologias, com mísseis balísticos, armas nucleares e satélites de vigilância, exigiram revisões profundas de doutrina. O conceito de dissuasão estratégica mudou a maneira como países percebiam segurança, capacidade de ataque e vulnerabilidade. A tecnologia não apenas fornecia ferramentas; redefinia a lógica de todo o confronto.
Mais recentemente, drones e veículos aéreos não tripulados alteraram novamente o paradigma. Conflitos no Oriente Médio e mais recentemente na Ucrânia, demonstraram que pequenos dispositivos podem mudar táticas e logística. Drones de reconhecimento e ataque permitem vigilância contínua, ataques cirúrgicos e saturação de defesas inimigas, obrigando a doutrina a considerar novos riscos e possibilidades de emprego.
Inovações contemporâneas e o impacto na doutrina
Hoje, tecnologias emergentes redefinem como as Forças Armadas operam em todos os níveis. Drones, inteligência artificial, guerra cibernética e sistemas autônomos representam fronteiras que a doutrina precisa absorver.
Drones: olhos e braços do novo campo de batalha - Os drones surgiram como ferramentas de vigilância, mas rapidamente expandiram seu papel para ataque, saturação de defesas e coleta de dados em tempo real. Pequenos modelos oferecem capacidade de reconhecimento em tempo quase real, enquanto plataformas maiores permitem ataques de precisão a longa distância. A doutrina precisa integrar seu uso de forma coordenada, considerando vulnerabilidades, contra-medidas e regras de engajamento, algo inexistente há duas décadas.
Inteligência artificial: multiplicador de decisão - A inteligência artificial transforma dados em decisão. Ela permite que grandes volumes de informação sejam analisados rapidamente, identifica padrões, antecipa movimentações inimigas e otimiza logística. Sistemas de apoio à decisão operacional, fusão de sensores e planejamento preditivo aumentam significativamente a capacidade de resposta. Mas a IA exige revisões doutrinárias: procedimentos, treinamento e princípios éticos precisam ser atualizados para evitar falhas e riscos legais.
Ciberespaço e guerra eletrônica - O domínio do ciberespaço tornou-se tão crítico quanto o domínio físico do campo de batalha. Redes de comando, sistemas de comunicação e sensores interligados oferecem vantagem estratégica, mas também criam vulnerabilidades. A doutrina moderna deve incorporar proteção de dados, redundâncias e operação em ambientes degradados, garantindo que uma eventual falha tecnológica não paralise a operação.
Sistemas autônomos e dilemas éticos
A introdução de sistemas de armas autônomas levanta desafios inéditos. Decisões antes humanas, como engajar um alvo, podem ser parcialmente automatizadas. Isso exige definição clara de responsabilidades, supervisão e regulamentação, demonstrando que inovação tecnológica e doutrina não podem andar separadas.
A doutrina como processo vivo
O ponto central é que a doutrina militar deve ser um processo em movimento. Laboratórios de conceito, exercícios de inovação e ciclos de revisão contínua são fundamentais para testar hipóteses antes de incorporá-las oficialmente. Isso garante que a doutrina acompanhe o ritmo das mudanças tecnológicas e minimize riscos de obsolescência.
A cultura organizacional é outro fator crítico. Uma Força que valoriza inovação incentiva experimentação, pensamento crítico e integração entre áreas como operações, inteligência, logística e tecnologia. Inserir ciência de dados, cibersegurança e ética tecnológica na formação do pessoal garante que a doutrina não apenas absorva novas tecnologias, mas as transforme em vantagem operacional.
Desafios e oportunidades para o Brasil
Para o Brasil, a relação entre tecnologia e doutrina é especialmente relevante. A Estratégia Nacional de Defesa (END) reconhece que ciência, tecnologia e uma base industrial robusta são fundamentais para a soberania. Empresas como Embraer Defesa, Avibras, SIATT e Akaer demonstram capacidade tecnológica avançada, mas enfrentam desafios de continuidade, financiamento e integração com universidades e centros de pesquisa.
A dependência tecnológica externa e a obsolescência prematura representam riscos reais, que precisam ser mitigados por políticas de governança, investimentos em P&D e planejamento estratégico de longo prazo. Além disso, o preparo do pessoal é essencial. Treinamento contínuo, exercícios realistas e integração com centros de pesquisa permitem que novas tecnologias sejam testadas antes de serem aplicadas em larga escala, garantindo que a doutrina seja operacional e não apenas teórica.
Navegando no futuro da guerra
O futuro da guerra não será definido apenas nos campos de batalha. Ele será moldado em laboratórios, universidades e centros de comando, onde ciência, tecnologia e doutrina se encontram. O desafio do Brasil é claro: transformar inovação tecnológica em conhecimento operacional e este, em vantagem estratégica.
Como lembra o General Talles Vilela, "a doutrina não pode ser uma verdade absoluta". Ela é como um navio em mar aberto: precisa de rumo, mas também de flexibilidade para ajustar as velas quando o vento muda. A tecnologia é esse vento constante, por vezes favorável, por vezes adverso, e a capacidade de navegar por ele determina a eficácia militar.
O país tem a oportunidade de não apenas acompanhar tendências, mas de liderar, integrando Forças Armadas, indústria, universidades e políticas públicas em um ciclo contínuo de inovação e aprendizado estratégico. O sucesso dependerá da capacidade de alinhar tecnologia, doutrina e cultura organizacional, garantindo que o Brasil transforme potencial em poder real e mantenha relevância em um cenário global cada vez mais competitivo.
por Angelo Nicolaci
GBN Defense - A informação começa aqui
um agradecimento especial ao Gen. Talles Vilela da Diretoria de Fabricação
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