A América Latina voltou ao centro do tabuleiro geopolítico global e não por acaso. Em um intervalo de poucos dias, Estados Unidos e China divulgaram documentos estratégicos que colocam a região no radar das grandes potências. A coincidência de datas não é mero detalhe burocrático: é um sinal inequívoco de que a região deixou de ser periferia e passou a ser espaço de disputa direta por poder.
A nova Estratégia Nacional de Segurança dos Estados Unidos resgata, em linguagem atualizada, a lógica da Doutrina Monroe. Washington deixa claro que considera as Américas sua principal prioridade estratégica e que não admite a presença de potências rivais atuando em áreas sensíveis. O discurso de segurança regional, na prática, funciona como um aviso: infraestrutura, tecnologia, energia e dados são linhas vermelhas.
Do outro lado, Pequim responde com método e visão de longo prazo. O Livro Branco da China para a América Latina e o Caribe apresenta um projeto abrangente de inserção regional, estruturado em cinco eixos: solidariedade, desenvolvimento, civilização, paz e conectividade interpessoal. Não se trata apenas de comércio, mas da construção gradual de interdependências que ampliam a influência chinesa em setores estratégicos.
A fricção entre essas duas visões ganha contornos concretos na Venezuela. A pressão exercida pelo governo Trump sobre Caracas não se limita a sanções econômicas ou isolamento diplomático. Ela funciona como um recado político ao restante da região: quando interesses estratégicos norte americanos são percebidos como ameaçados, a resposta pode ser dura, rápida e multifacetada.
A fricção entre essas duas visões ganha contornos concretos na Venezuela. A pressão exercida pelo governo Trump sobre Caracas não se limita a sanções econômicas ou isolamento diplomático. Ela funciona como um recado político ao restante da região: quando interesses estratégicos norte-americanos são percebidos como ameaçados, a resposta pode ser dura, rápida e multifacetada.
Essa lógica não se restringe a America Latina. Na última semana, a decisão do governo Trump de anunciar novos investimentos de bilhões de dólares em defesa para Taiwan reforçou o mesmo padrão estratégico, agora no Indo-Pacífico. O movimento, voltado ao fortalecimento das capacidades militares taiwanesas diante da pressão chinesa, sinaliza que Washington está disposto a elevar o nível de atrito direto com Pequim em teatros considerados vitais para seus interesses estratégicos.
O paralelo é claro. Assim como a Venezuela funciona como um laboratório de contenção no entorno imediato dos Estados Unidos, Taiwan cumpre papel semelhante na contenção da China em seu próprio espaço geopolítico sensível. Em ambos os casos, Washington utiliza instrumentos de poder econômico, militar e tecnológico para reafirmar linhas vermelhas e demonstrar disposição de escalar a competição estratégica, ainda que sem recorrer ao confronto direto.
A presença chinesa e russa na Venezuela, seja no setor energético, seja na cooperação militar, é vista por Washington como uma violação direta de sua área de influência tradicional. Nesse contexto, a Venezuela deixa de ser apenas uma crise política local e passa a representar um exemplo concreto do custo de desafiar a primazia norte-americana no hemisfério. A mensagem é amplificada quando combinada a ações simultâneas em outros teatros, como o reforço militar de Taiwan, deixando claro que a disputa com a China é global, interconectada e conduzida em múltiplos eixos.
Pequim, por sua vez, evita o confronto direto. Sua estratégia é silenciosa, técnica e estrutural. Quando a China oferece cooperação em Inteligência Artificial, semicondutores, satélites, infraestrutura digital ou o uso do sistema BeiDou de navegação, ela não está apenas vendendo tecnologia. Está propondo integração a um ecossistema próprio, no qual dados, padrões técnicos e dependências de longo prazo se tornam instrumentos de poder.
A resposta americana ao avanço chinês, seja na América Latina, seja no Indo-Pacífico, revela uma mesma lógica estratégica: impedir que Pequim consolide posições duradouras em áreas consideradas críticas, ainda que isso implique elevar o nível de atrito diplomático, econômico e militar. O investimento bilionário em Taiwan e a pressão sobre a Venezuela são expressões distintas de uma mesma estratégia de contenção global.
A presença chinesa e russa na Venezuela, seja no setor energético, seja na cooperação militar, é vista por Washington como uma violação direta de sua área de influência tradicional. Nesse contexto, a Venezuela deixa de ser apenas uma crise política local e passa a representar um laboratório de contenção estratégica. Um exemplo extremo do custo de desafiar a primazia norte americana no hemisfério.
Pequim, por sua vez, evita o confronto direto. Sua estratégia é silenciosa, técnica e estrutural. Quando a China oferece cooperação em Inteligência Artificial, semicondutores, satélites, infraestrutura digital ou o uso do sistema BeiDou de navegação, ela não está apenas vendendo tecnologia. Está propondo integração a um ecossistema próprio, no qual dados, padrões técnicos e dependências de longo prazo se tornam instrumentos de poder.
É justamente nesse ponto que a disputa se aprofunda. Quem controla redes, dados, sistemas espaciais e infraestrutura crítica controla capacidades futuras de decisão. Por isso, a reação americana tende a se intensificar por meio de pressões sobre contratos, exigências de segurança para telecomunicações, condicionantes tecnológicos e, cada vez mais, o uso de tarifas e sanções como instrumentos políticos.
A América Latina, que por décadas orbitou à margem da competição estratégica global, passa a ser disputada ativamente. E essa disputa cobra seu preço. Países que antes podiam se beneficiar da ambiguidade agora são forçados a fazer escolhas, explícitas ou implícitas.
Para o Brasil, o desafio é ainda mais sensível. O país faz fronteira com a Venezuela, sente os efeitos da instabilidade regional e, ao mesmo tempo, mantém relações econômicas profundas com a China e vínculos históricos, militares e tecnológicos com os Estados Unidos. Importar conflitos estratégicos de terceiros não é uma opção viável.
Preservar margem de manobra exige mais do que equilíbrio retórico. Exige estratégia nacional. Cooperação econômica precisa ser separada de dependência estratégica. Setores críticos como defesa, espaço, energia, comunicações e dados demandam regras claras, fortalecimento da Base Industrial de Defesa e visão de longo prazo.
A Venezuela ilustra o custo de perder essa autonomia. A disputa entre Estados Unidos e China não será resolvida fora da América Latina, tampouco sem impactos diretos sobre ela. A questão central para o Brasil não é escolher lados, mas decidir se terá uma estratégia própria ou se aceitará jogar um jogo cujas regras são definidas por outros.
Nesse contexto, o Brasil ocupa uma posição singular no Hemisfério Ocidental. Não é apenas a maior economia da América Latina, mas um país com dimensão continental, vastos recursos naturais estratégicos, capacidade industrial relevante e ambições históricas de autonomia estratégica. Energia, alimentos, minerais críticos, biodiversidade, espaço, defesa e tecnologia colocam o país no radar das grandes potências, não como coadjuvante, mas como ativo estratégico.
A relação com os Estados Unidos é marcada por vínculos históricos na área militar, de defesa e de interoperabilidade, além de cooperação em inteligência, exercícios conjuntos e acesso a determinados sistemas e tecnologias sensíveis. Ao mesmo tempo, trata se de uma relação assimétrica, na qual Washington tende a condicionar parcerias à sua própria agenda estratégica, especialmente quando se trata de tecnologia crítica, espaço, comunicações e defesa cibernética. O risco, nesse caso, não é a cooperação em si, mas a limitação da liberdade de decisão brasileira.
Já a parceria com a China apresenta outra natureza. Pequim tornou se o principal parceiro comercial do Brasil, absorvendo grande parte das exportações de commodities agrícolas e minerais e ampliando sua presença em setores como energia, infraestrutura, logística, telecomunicações e tecnologia. Essa relação gera oportunidades econômicas concretas, mas também cria dependências estruturais que, se não forem administradas com critério, podem afetar a soberania decisória no médio e longo prazo.
O ponto central não está em escolher entre Washington ou Pequim, mas em compreender que ambas as relações carregam custos e benefícios estratégicos. Parcerias podem fortalecer capacidades nacionais ou gerar vulnerabilidades, dependendo de como são estruturadas. Transferência de tecnologia real, fortalecimento da indústria nacional, domínio de sistemas críticos e controle sobre dados e infraestrutura devem ser critérios inegociáveis.
Nesse cenário, a soberania brasileira não será preservada por discursos, mas por decisões concretas. Isso inclui investir de forma consistente na Base Industrial de Defesa, ampliar capacidades nacionais em áreas como espaço, cibernética, semicondutores e energia, definir marcos regulatórios claros para setores estratégicos e diversificar parcerias para reduzir dependências excessivas.
O Brasil ainda possui algo que muitos países da região já perderam: margem de manobra estratégica. Mas essa margem não é permanente. Ela se reduz à medida que decisões estruturais são tomadas sem visão de longo prazo. A disputa entre Estados Unidos e China não oferece neutralidade confortável, oferece escolhas complexas, que exigem planejamento, coordenação e visão de Estado.
Alcançar relevância e preservar independência estratégica não são objetivos abstratos. Eles se materializam em políticas públicas, decisões industriais, escolhas tecnológicas e prioridades orçamentárias. Países que compreendem isso deixam de reagir à pressão externa e passam a moldar o ambiente ao seu redor.
No caso brasileiro, um primeiro eixo central é o domínio de capacidades críticas. Defesa, espaço, cibernética, energia e tecnologias de uso dual não podem ser tratadas apenas como áreas comerciais. O fortalecimento de programas como o Gripen, o KC 390, o submarino com propulsão nuclear, o setor espacial e os sistemas de comando, controle e vigilância representa mais do que capacidade militar: são instrumentos de inserção estratégica e autonomia tecnológica. Países que dominam essas áreas falam de igual para igual.
Outro vetor decisivo é a Base Industrial de Defesa. Sem uma indústria nacional capaz de projetar, produzir, manter e evoluir sistemas estratégicos, qualquer parceria externa se torna assimétrica. Transferência de tecnologia só é efetiva quando há capacidade interna de absorção, engenharia própria e continuidade de programas. Caso contrário, cria se dependência disfarçada de cooperação. Investir na indústria nacional não é protecionismo, é soberania.
A política espacial ilustra bem esse ponto. Satélites de comunicação, observação da Terra e navegação são hoje ativos estratégicos. Dependência de sistemas estrangeiros para dados, imagens ou posicionamento compromete autonomia decisória em crises. O Brasil precisa avançar de forma consistente no desenvolvimento de satélites próprios, lançadores e centros de controle, em parcerias que preservem domínio nacional sobre dados e infraestrutura crítica.
No campo econômico, diversificação é poder. Manter relações comerciais profundas com a China é racional, mas concentrar exportações em commodities e importações em bens de maior valor agregado reduz capacidade de barganha. Agregar valor, dominar cadeias produtivas estratégicas e investir em inovação industrial ampliam autonomia e relevância. Países respeitados no sistema internacional são aqueles que controlam partes chave das cadeias globais.
A diplomacia também precisa operar com lógica estratégica. O Brasil possui tradição de diálogo, multilateralismo e atuação equilibrada, mas isso precisa ser acompanhado de objetivos claros. Fóruns como BRICS, ONU, OMC e mecanismos regionais não devem ser apenas espaços de discurso, mas plataformas para defesa de interesses nacionais, acesso a tecnologia, financiamento e influência normativa.
Outro ponto crucial é a integração regional sob liderança brasileira. A América do Sul fragmentada é vulnerável à pressão externa. Uma região minimamente coordenada amplia poder de negociação coletivo e reduz interferências. O Brasil, pela sua escala, é o único país capaz de articular esse processo, seja em infraestrutura, energia, defesa ou resposta a crises. Liderar não é impor, é estruturar.
Por fim, relevância internacional exige previsibilidade interna. Estratégias nacionais não podem oscilar a cada ciclo político. Defesa, política externa, ciência e tecnologia precisam ser políticas de Estado, com continuidade, metas claras e financiamento estável. Potências respeitam países que sabem para onde vão.
A disputa entre Estados Unidos e China oferece riscos, mas também oportunidades. Países que possuem projeto nacional usam a competição entre grandes potências para extrair benefícios, ampliar capacidades e fortalecer soberania. Aqueles que não possuem acabam sendo arrastados por ela.
O Brasil ainda tem tempo, recursos e capital político para escolher o primeiro caminho. Mas o espaço de manobra se estreita. Em um sistema internacional cada vez mais duro, independência não é neutralidade passiva, é capacidade ativa de decidir.
Em um tabuleiro cada vez mais disputado, soberania não se declara. Constrói se com estratégia, capacidade e visão de longo prazo.
Por Angelo Nicolaci


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