terça-feira, 5 de junho de 2018

Projeto tenta devolver vida ao Mar de Aral, destruído por planos soviéticos de irrigação

Almas Tolvashev, 78 anos, remexe a areia sob o esqueleto enferrujado de um barco pesqueiro. A embarcação é parte de uma frota desmantelada de cerca de dez embarcações que, em outra época, fizeram da cidade portuária de Moynaq um importante polo de pesca no Mar de Aral - lago de água salgada que já ocupou um território de 68 mil quilômetros quadrados.

"A história do povo karakalpak começa com o mar", diz Tolvashev, um ex-pescador. "Pescar era a primeira coisa que um pai ensinava a seu filho. Havia 250 barcos aqui, e eu costumava pescar de 600 a 700 quilos de peixes por dia. Agora, não temos mais mar."

Moynaq está localizada no coração de Karakalpaquistão, uma república semiautônoma dentro do Uzbequistão, na Ásia Central. Houve um tempo em que 98% dos peixes consumidos pelos uzbeques vinham dali.

Um desastre ambiental, no entanto, se instalou. O Mar de Aral secou, e substâncias tóxicas em seu leito ficaram expostas, causando sérios problemas de saúde na população karakalpak. Está em curso, agora, um ambicioso projeto, que envolve a plantação de milhões de árvores para tentar salvar essa comunidade e seu ambiente.

Tragédia ambiental

O Aral começou a secar nos anos 1960, quando a União Soviética, da qual o Uzbequistão fazia parte, desviou o curso da água dos dois principais rios que abasteciam o mar com o objetivo de irrigar novas plantações de algodão.

Como o algodão está em alta, o Kremlin ignorou o prolema ambiental decorrente da transposição das águas.

E, à medida que a água desaparecia do Aral, a concentração de sal aumentava, prejudicando a vida marinha.

"O estoque de peixes caía, e só conseguíamos pescar peixes mortos", conta Tolvashev. "Hoje, os mais jovens têm de mudar de país se quiserem conseguir emprego."

Atualmente, o Mar de Aral tem apenas 10% de seu tamanho original - perdeu-se uma área equivalente a quase o tamanho do Estado de Santa Catarina.

"Não está como antes", lamenta o ex-pescador. "O clima está ruim, há todo este pó no ar."

Vidas em perigo

Quando o médico Yuldashbay Dosimov começou a trabalhar no hospital do porto de Moynaq, nos anos 1980, o litoral já estava encolhendo.

Ele lembra ter encontrado ali diversos pacientes com "doenças respiratórias, tuberculose, problemas renais". "Até recentemente, muitas crianças morriam de diarreia", relata.

As autoridades soviéticas que expandiram a indústria algodoreira uzbeque não previram que os herbicidas e pesticidas que usavam em suas plantações acabariam chegando aos rios ao redor e, consequentemente, ao leito do Aral, com duras consequências para a saúde da população.

A água contaminada fazia mal a quem a bebia, e o problema foi exacerbado à medida que o mar secava, uma vez que os produtos tóxicos das plantações ficaram exposto e se espalharam pelo ar por conta das tempestades de areia.

A população local passou a sofrer problemas de crescimento, de fertilidade, pulmonares e cardíacos, além de elevadas taxas de câncer. Um estudo acadêmico concluiu que a ocorrência de câncer de fígado dobrou entre 1981 e 1991 na região.

Outra pesquisa descobriu que, no fim dos anos 1990, a mortalidade infantil ao redor do Mar de Aral variou entre 60 e 110 a cada mil nascimentos, taxa muito maior do que no restante do Uzbequistão (48 a cada mil) e do que na Rússia (24 a cada mil).

Durante décadas, essa crise de saúde foi ignorada. As autoridades locais só admitiram que o Aral estava desaparecendo quando a União Soviética se desmantelou, no início dos anos 1990.

Agora, busca-se uma solução, e o médico Dosimov espera que ela melhore radicalmente a vida da população karakalpak.

"Eles (autoridades) precisam amenizar o impacto do ressecamento do mar na saúde das pessoas, e por isso estão plantando árvores."

Leito de árvores

A alguns quilômetros de distância de Moynaq, dois tratores criam duas longas fileiras no leito do mar, em uma área que 40 anos atrás estava coberta por 25 metros de água.

Sentado na traseira do trator, um jovem vai dispersando sementes pelo chão árido.

"Faça chuva ou faça sol, temos duas semanas para plantar um hectare", diz ele. "O tempo tem estado frio e chuvoso, mas não vamos sair daqui até terminarmos."

Ele e seus colegas estão plantando árvores saxaul, um arbusto nativo dos desertos da Ásia Central e, agora, a primeira linha de defesa contra a mudança climática no Uzbequistão.

"Uma árvore saxaul adulta consegue restaurar até 10 toneladas de solo ao redor das suas raízes", explica o especialista em reflorestamento Orazbay Allanazarov.

Além disso, a saxaul contém os ventos, impedindo que a areia tóxica do solo se espalhe ainda mais pela atmosfera. O plano é cobrir todo o antigo leito do Aral com esses arbustos.

"Escolhemos a saxaul porque ela consegue sobreviver no clima seco e no solo salgado", explica.

Ele mostra um trecho semeado cinco anos atrás, onde metade das plantas sobreviveu - uma taxa que considera boa.

As árvores são plantadas em fileiras, a 10 metros de distância entre si, para que, ao crescerem, liberem as próprias sementes e preencham esse espaço vazio.

Até agora, cerca de 500 mil hectares de deserto foram cobertos com árvores saxaul. Mas ainda restam mais de 3 milhões de hectares a preencher.

No ritmo atual, pode levar 150 anos até que uma floresta cresça por ali.

"Estamos lentos", admite Allanazarov. "Precisamos agilizar o processo. Mas para isso precisamos de mais dinheiro, de mais investimento internacional."

Assim como o ex-pescador Almas Tolvashev, Allanazarov sabe que o Mar de Aral pode não voltar nunca mais. Mas destaca que o projeto, ao menos, provê mais qualidade de vida ao povo karakalpak, após tantas décadas de sofrimento.


Fonte: BBC Brasil
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