sábado, 8 de janeiro de 2011

A Inteligência Estratégica e a Defesa Nacional


No permanente monitoramento do ambiente externo ao Estado, a Inteligência Estratégica constitue os olhos e os ouvidos do Estado, atuando diretamente na defesa dos interesses da nação. Tendo a nobre tarefa de identificar as fontes de potenciais ameaças aos interesses nacionais, cuja origem possa situar-se no conflito de interesses com outros Estados ou grupos hostis, a Inteligência Estratégica torna-se valioso instrumento de assessoria para as decisões de nível estratégico.

Sendo uma atividade de responsabilidade exclusiva do Estado, a Inteligência Estratégica tem como característica o desenvolvimento de ações especializadas e complexas. O principal objetivo dessas ações é identificar, coletar, analisar e interpretar dados e informações nas mais variadas áreas do conhecimento e dos assuntos de interesses do Estado que a desenvolve. Esse tipo de Inteligência é classificada como estratégica devido ao fato de servir como suporte direto e decisivo nas decisões políticas e estratégicas de mais alto nível do Estado.

É raro encontrar um país que não tenha uma estrutura de Inteligência Estratégica organizada e voltado para o assessoramento ao processo decisório do Estado. É natural que essa estrutura varie de país para país, em função, principalmente, do peso específico do mesmo na comunidade internacional. Isso é explicado pela existência permanente de conflitos de interesses no relacionamento entre as nações. Em termos históricos, são conflitos que se manifestam nas mais variadas áreas e por razões diversas, tais como por fatores políticos, por razões econômicas, por questões geopolíticas ou militares, por razões étnicas e religiosas, ou ainda por diferenças culturais.

Assim, como forma de prevenir surpresas e conseguir vantagens nas áreas diplomática, econômica e militar, por exemplo, os países utilizam a Inteligência Estratégica como forma de obtenção de conhecimentos úteis às tomadas das decisões estratégicas. No acirrado e competitivo jogo entre as nações, aquelas que possuem o conhecimento e o domínio de todas as variáveis envolvidas nos conflitos de interesses e, ao utilizá-las adequadamente, obtêm vantagens nas negociações ou na gestão desses conflitos.

De modo geral, quanto mais rico e desenvolvido um país, portanto com maiores interesses a serem preservados, além de outros a serem conquistados, maior e mais eficiente é a estrutura de Inteligência Estratégica. Porém, temos casos de países que não têm peso específico na comunidade internacional, mas em função de graves problemas geopolíticos, envolvendo ameaças e crises permanentes, são obrigados a manter uma eficiente estrutura de Inteligência como forma de prevenir surpresas e permitir um adequado assessoramento no gerenciamento das crises e confrontos, inclusive militar. Este é o caso, por exemplo, do Estado de Israel, onde a eficácia da Inteligência Estratégica torna-se uma questão de sobrevivência daquele país.

Na prática, um eficiente sistema de Inteligência Estratégica traz como benefícios aos Estados a capacidade de visualizar, antecipadamente, as instabilidades presentes no ambiente internacional e que possam representar ameças aos interesses dos mesmos, permitindo a adoção das medidas necessárias à neutralização ou minimização dessas ameaças; a possibilidade da conquista de vantagens comparativas frente aos interesses e iniciativas de outros Estados nas áreas política, diplomática, econômica, tecnologica, militar, etc.; a capacidade de identificar as origens das ameaças que possam representar riscos aos interesses dos Estados, permitindo a adoção das medidas oportunas, etc.

Essas são algumas razões que têm permitido que a Inteligência Estratégica tenha tido uma crescente valorização, ao longo dos tempos, como valioso instrumento de assessoria das grandes decisões políticas e estratégicas. Normalmente, o valor atribuído pelos países as suas estruturas de Inteligência Estratégica é refletido no "status" dado às mesmas, nos investimentos financeiros realizados, na valorização e capacitação dos profissionais que a integram e, principalmente, na permanente preocupação em mante-la atualizada, eficiente e compatível com a postura estratégica, em âmbito internacional, que o país atribui a si próprio.

É neste sentido que as atividades de Inteligência Estratégica têm um peso significativo nas questões afetas à Defesa Nacional. Como o conceito de Defesa Nacional está diretamente relacionado com as ameaças externas à soberania e aos interesses do Estado, pode-se inferir que a Inteligência Estratégica torna-se, na prática, a primeira instância da Defesa Nacional. Isso tem explicação na responsabilidade que a mesma tem de perceber, identificar e dimensionar as ameaças que possam afetar os interesses da nação, principalmente aquelas ameaças em que possam estar presentes o potencial uso de emprego do poder militar.

Nas situações em que as ameaças percebidas possam se transformar em crises e, potencialmente em conflito armado, a Inteligência Estratégica tem o inestimável valor de auxiliar no dimensionamento dessas ameaças. Isso dará ao Estado as condições de desenvolver as estratégias necessárias e adequadas ao enfrentamento das mesmas, bem como servirá para estabeler qual o adequado nível de preparo da estrutura de defesa do país, aí incluído as Forças Armadas. Ainda, no caso de persistir a ameaça, e sendo inevitável o conflito, a Inteligência Estratégica será, também, um precioso instrumento de assessoria no estabelecimento das estratégias para a utilização do poder militar.

Uma estrutura de Inteligência Estratégica eficaz se caracteriza por desenvolver atividades complexas. Normalmente, a forma como a Inteligência é organizada permite a execução de uma variada gama de atividades, dentre as quais podem ser destacadas aquelas voltadas para o monitoramento do poder nacional dos países de interesse, ou bloco de países, aqui representado, principalmente, pelo poder político, pelo poder militar, pelo potencial de ciência e tecnologia e de inovações tecnológicas, de áreas geográficas e da evolução geopolítica, e após o fim da guerra fria, e com maior intensidade, o monitoramento do poder econômico.

“Inteligência (informações estratégicas) são os conhecimentos sobre os quais se devem apoiar as relações exteriores de nosso país, na paz e na guerra”, conforme afirma Sherman Kent, estudioso deste assunto, ao referir-se à postura estratégica dos Estados Unidos no período pós segunda guerra mundial.

Além dessas atividades, a Inteligência Estratégica deverá ter a capacidade de desenvolver atividades específicas para neutralizar as ações ofensivas de inteligência praticadas por outros Estados, ou grupos hostis, o que é conhecido como atividades de contra-inteligência.

Na produção de Inteligência de valor estratégica, também a área militar colabora de forma significatica com o esforço do Estado. As Forças Armadas desenvolvem, principalmente, Inteligência Estratégica voltada para identificar e dimensionar o valor estratégico e operacional de emprego militar de um determinado país ou grupo de países. Neste sentido, as Forças Armadas desenvolvem atividades específicas nas áreas de imagens, alvos e objetivos, eletrônica, radar, comunicações, radiação, eletroótica, laser, acústica, geográfica, meteorológica, além da evolução e dimensionamento do poder militar dos países de interesse, etc.

A necessidade de produzir conhecimentos de valor estratégico leva o Estado a desenvolver esforços em áreas variadas e abrangentes, o que obriga a estrutura de Inteligência a desenvolver competências em todas essas áreas, de modo que possa existir um eficiente monitoramento das mesmas, e permitir o assessoramento das decisões políticas e estratégicas com a oportunidade exigida.

Atualmente, quando as alterações no ambiente internacional são muito rápidas, obrigando os Estados a um permanente acompanhamento dessas evoluções e tendências, a atividade de Inteligência Estratégica passa a desempenhar, cada vez mais, papel de vital importância no assessoramento ao processo decisório.

O esforço para preservar nossos interesses vitais, bem como identificar e neutralizar as potenciais forças contrárias a esses interesses, passa a depender, cada vez mais, de conhecimentos oportunos sobre as potenciais ameaças existentes. Isso implica na existência de uma atividade de Inteligência Estratégica ágil, eficaz e compatível com a postura estratégica e os interesses do país.

Em se tratando de uma atividade que desenvolve ações complexas, a produção do conhecimento de valor estratégico segue um processo consagrado na maioria dos países. Esse processo, comumente conhecido como “ciclo de inteligência”, envolve quatro etapas principais: o planejamento, a coleta dos dados, a análise e interpretação dos dados e a distribuição do conhecimento. Vejamos, de forma sintética, como isso ocorrre:

A etapa do planejamento consiste em definir os requisitos básicos para a coleta e a produção de conhecimentos de valor estratégico e necessários à tomada de decisões estratégicas. Nesta etapa, são definidos os tipos de conhecimentos que o Estado necessita, bem como as razões que justificam os esforços e os sacrifícios na produção dos mesmos. Também, em função da urgência do acesso a esses tipos de conhecimentos, nesta etapa é estabelecida a prioridade a ser considerada na coleta e produção do mesmos.

A priorização a ser dada à coleta e produção de determinados tipos de conhecimentos de interesse do Estado é de responsabilidade do poder político, contando com a devida assessoria dos profissionais de inteligência, em função, principalmente, dos envolvimentos institucionais, diplomáticos, dos custos envolvidos e dos riscos políticos presentes nesse tipo de atividade.

A etapa da coleta de dados e informações corresponde ao estabelecimento de qual setor da estrutura de Inteligência Estratégica ficará responsável pela busca e coleta dos mesmos, bem como, qual será a forma de obtenção desses dados, além da avaliação da capacidade existente de faze-lo. Isto significa, também, avaliar o custo envolvido no esforço de realizar tais tarefas. Em função da urgência e da prioridade estabelecidas, uma incapacidade estrutural identificada em determinado momento poderá implicar em adaptar ou criar as condições para eliminar esta falha.

Na atualidade, os Estados se valem de avançados instrumentos, em termos de tecnologia, para a coleta de dados nas mais variadas áreas. Como exemplo pode-se citar a utilização de satélites para coleta de imagens ou monitoramento de comunicações; a utilização de aeronaves não tripuladas (UAV) para a obtenção de imagens ou monitoramento de determinadas áreas, ou ainda obtenção de dados de comunicações; a utilização de estações terrenas para monitoramento de comunicações, o mesmo ocorrendo com navios especializados em vigilância eletrônica; a utilização de modernas aeronaves de reconhecimento; a utilização de profissionais de inteligência infiltrados nas áreas de interesse; a utilização de militares integrantes de forças especiais; ou ainda, a parceria com serviços de inteligência de países aliados. Na prática, as formas de coleta de dados e de informações são variadas e tratadas com sigilo pelos Estados que as praticam.

A terceira etapa corresponde à análise e interpretação dos dados colhidos. Significa organizar, integrar e dar um sentido a esses dados e informações. Na prática, é nesta etapa que os dados colhidos serão transformados em conhecimentos úteis às tomadas das decisões políticas e estratégicas. Será o momento em que o nível profissional e capacitação dos profissionais de inteligência será decisivo.

Encerrando o ciclo de inteligência, a quarta etapa se caracteriza pela difusão dos conhecimentos aos usuários que deles necessitam, ou seja, os integrantes do processo decisório. Como os conhecimentos produzidos darão subsídios a decisões políticas e estratégicas, os mesmos somente terão valor se forem entregues aos decisores estratégicos com a oportunidade requerida.

Em função das caracteristicas do relacionamento entre as nações, onde predomina a competição e o conflito em variadas áreas, as necessidades do Estado de conhecimentos de nível estratégico são permanentes. Isso realimenta o ciclo de inteligência, levando-o a uma constante atualização e adaptação às necessidades de conhecimentos de valor estratégico exigidos pelo Estado.

Sendo uma necessidade permanente do Estado, em função de significar uma assessoria permanente a decisões complexas e, portanto, com consequências para o Estado e para toda a sociedade, o processo de produção de Inteligência de valor estratégico implica na existência de políticas de longo prazo voltadas para a orientação e coordenação dessas atividades. Neste sentido, a responsabilidade pela organização, coordenação e supervisão das atividades envolvendo a Inteligência Estratégica é dos Poderes Executivo e Legislativo. O Executivo e o Legislativo têm a responsabilidade de estabelecer a missão, a estrutura e o papel a ser desempenhado pela Inteligência Estratégica. Especificamente ao Executivo cabe a responsabilidade de orientar as atividades, considerando as necessidades e os interesses da nação, enquanto ao Legislativo cabe a responsabilidade de supervisionar se essas atividades estão sendo desenvolvidas de acordo com os reais interesses da sociedade.

Um exemplo de esforço na coleta de dados com fins estratégicos, e que faz parte de uma política de Estado é o sistema Echelon. Este ensaio não considera os aspectos éticos relacionados ao sistema, mas tão somente a forma como está estruturado, à eficácia e aos resultados obtidos por esse sistema.

O Echelon é um sistema global de interceptação de comunicações, com enfase em comunicações que tenham valor econômico. Trata-se de um sistema global de vigilância. Utiliza estações receptoras, via satélite, e satélites de espionagem. O Echelon pode interceptar qualquer comunicação via telefone, fax, internet ou e-mail, emitido por quem quer que seja, com a finalidade de acessar o conteúdo das mensagens. O Echelon é um sistema liderado pelos Estados Unidos, contando com a cooperação do Reino Unido, Canadá, Austrália e a Nova Zelândia.

De acordo com um relatório elaborado pelo Parlamento Europeu sobre o sistema de interceptação Echelon, de 11 de julho de 2001, os serviços de informações dos Estados Unidos não investigam apenas assuntos de interesse econômico, mas interceptam, também, as comunicações entre empresas, justificando as interceptações com o propósito de combater tentativas de corrupção; que no caso de uma interceptação pormenorizada, existe o risco de as informações não serem utilizadas na luta contra a corrupção, mas sim para a espionagem dos concorrentes.

O relatório do Parlamento Europeu apresenta, ainda, fatos interessantes relacionados ao projeto SIVAM, implementado pelo governo brasileiro em 1994. Aponta o relatório que o contrato entre o Brasil e a empresa francesa Thomson-Alcatel, no valor de 1.4 bilhões de dólares, foi objeto de espionagem por parte da inteligência americana, sendo a justificativa da ação a existência de corrupção. Aponta ainda o relatório, que o então Presidente Clinto teria se queixado ao governo brasileiro. Posteriormente, o contrato foi vencido pela empresa americana Raytheon.

Outro exemplo registrado no relatório está relacionado a um contrato, no valor de 6 bilhões de dólares, entre a empresa européia Airbus e o governo da Arábia Saudita para a aquisição de aeronaves. Segundo o relatório, houve interceptação, por parte da inteligência americana, de comunicações de telefonemas e de fax do consórcio europeu Airbus e o governo Saudita. Novamente a justificativa foi a existência de corrupção no contrato. O resultado final da negociação foi que a empresa americana Mcdonnel-Douglas, concorrente da Airbus, venceu o contrato.

O exemplo do sistema Echelon serve apenas para ilustrar o esforço que os diversos países fazem para coletar dados e informações que atendam aos respectivos interesses. No caso do Echelon, o esforço está concentrado na obtenção de dados de valor econômico. Porém, torna-se importante considerar que esforço semelhante é realizado, permanentemente, em outras áreas de interesse tais como o campo político, diplomático, geopolítico, de ciência e tecnologia, militar, etc.

Ao longo da história encontramos, também, exemplos de fracassos da Inteligência Estratégica, ou do inadequado uso político da mesma, com prejuízos e reflexos negativos para os países em questão. O exemplo mais recente está relacionado com a invasão do Iraque por forças americanas, com a justificativa da existência de armas de destruição em massa no Iraque. Este caso poderia ser considerado falha de inteligência ou manipulação política dos fatos?

A grande repercussão mundial envolvendo as frágeis argumentações que justificaram a invasão do Iraque, em 2003, resultara em diversas investigações realizadas tanto pelo Senado Americano, pela própria Casa Branca, pela Comunidade Européia, pela Grã-Bretanha, pela ONU, etc. A comissão de investigação do Senado Americano concluiu que a Inteligência americana havia errado na avaliação sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. A comissão criada pela Casa Branca concluiu que as agências de inteligência americanas haviam errado a maioria das avaliações sobre o Iraque, bem como tinham pouco conhecimento sobre as ameaças existentes para os Estados Unidos.

A investigação realizada pela Grã-Bretanha, principal aliado dos Estados Unidos na invasão ao Iraque, também concluiu que o Iraque não tinha armas químicas ou biológicas na época que as forças britânicas e americanas invadiram aquele país. O que chama a atenção no caso da Grã-Bretanha foi a declaração pública do Serviço Secreto britânico, pedindo ao governo para nunca mais usá-lo para justificar publicamente uma guerra.

Outro exemplo histórico do inadequado uso da Inteligência Estratégica encontramos na Guerra das Malvinas em 1982. Após o fracasso militar e político da empreitada argentina, uma comissão criada para avaliar as falhas de inteligência registrou que “o mecanismo de produção de inteligência estratégico-militar não foi o mais adequado, já que não teve bases suficientes para o desempenho de sua tarefa. A inteligência de nível elevado deveria ser feita desde o tempo de paz, com vista aos prováveis inimigos”, conforme consta no relatório Rattenbach.

Em que pese existir, em algumas situações, conflitos na utilização política da Inteligência pelos governos, o que reforça a efetiva participação do Legislativo na supervisão dessas atividades, o fato é que a Inteligência Estratégica tem um valor inestimável como assessoria ao processo decisório de mais alto nível do Estado.

A capacidade de perceber, identificar, coletar, analisar e interpretar os dados e as informações existentes, transformando-as, com oportunidade, em conhecimentos úteis à tomada das decisões políticas e estratégicas, constitui a essência da Inteligência Estratégica. Assim, o poder de o Estado antecipar decisões complexas, obtendo vantagens comparativas frente a outros competidores, sejam outros Estados ou grupos hostis, significa a garantia da manutenção da soberania e dos interesses nacionais. Esta capacidade somente será viável se a nação mantiver os olhos e os ouvidos em condições saudáveis e em plenas condições de funcionamento; e isto é o que significa a existência de uma eficaz estrutura de Inteligência Estratégica.


Autor: Marcio Rocha
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Ciências Aeroespaciais pela Universidade da Força Aérea (UNIFA). Graduado em economia.


Fonte: Defesa e Gestão Estratégica UFRJ
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