domingo, 3 de julho de 2011

Jobim e a (des)inteligência militar


A discussão sobre a abertura dos "arquivos secretos da ditadura" por vezes parte de alguns pressupostos equivocados. Por exemplo, já existem muitos arquivos disponíveis para consulta. Na verdade, entre os países que viveram ditaduras militares o Brasil é o que possui o maior acervo de documentos já abertos aos cidadãos. Estão no Arquivo Nacional, entre outros, os papéis do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Conselho de Segurança Nacional.

Existem, entretanto, três arquivos muito importantes ainda fechados. Refiro-me aos documentos secretos dos antigos órgãos de inteligência militar, isto é, os que cuidavam da coleta e análise de informações nos velhos ministérios militares: o CIE (Centro de Informações do Exército), o Cisa (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha). Eram três dos principais pilares da "comunidade de informações" responsável pela repressão. Esses órgãos eram importantes porque não cuidavam apenas de informações (como o SNI) ou de "operações de segurança" (prisões, interrogatórios): eram mistos, faziam de tudo. Por isso, seus documentos sigilosos eram os mais esperados pelo seu potencial revelador. Por exemplo, se existe algum registro sobre o que ocorreu na guerrilha do Araguaia, ele está no acervo do CIE.

Os papéis da Aeronáutica já foram enviados ao Arquivo Nacional, mas é visível que foram expurgados previamente. Os comandantes militares do Exército e da Marinha negaceiam. Não transferem os documentos para o Arquivo Nacional, mas também não dizem, com todas as letras, o que aconteceu.

Nesse sentido, foi bastante infeliz a recente declaração do ministro da Defesa, Nelson Jobim, segundo a qual não haveria problema em aprovar o fim do chamado "sigilo eterno" de documentos ultrassecretos - através da Lei de Acesso à Informação que se encontra no Congresso Nacional - porque os documentos da ditadura "já desapareceram".

A declaração é desastrada por várias razões. Em primeiro lugar, ela referenda a posição acovardada dos comandantes militares que temem encarar o passado - algo que prejudica as próprias Forças Armadas brasileiras que não conseguem se livrar desse passivo. Muitos jovens oficiais - que frequentemente entrevisto - têm posição contrária.

Pelo que diz Jobim, o Exército e a Marinha destruíram seus acervos. O ministro afirma que isso foi feito "à época". Pessoalmente, acho muito difícil que os antigos ministros militares da ditadura tenham destruído esses documentos: além das informações da repressão, os arquivos continham dados sobre a segurança nacional. A destruição desse tipo de documento é um ato muito grave.

Na verdade, um crime. Quando uma autoridade destrói documentos, deve produzir uma ata na qual registra o que foi descartado, quando o foi, o motivo, etc. Estaria Nelson Jobim acusando os antigos oficias-generais de terem praticado esse crime?

A declaração do ministro também é infeliz porque expressa certa desinteligência, pois existem muitos documentos oriundos do período do regime militar que não desapareceram. A produção de documentos sigilosos durante a ditadura militar era tão grande que seria muito difícil destruir tudo. Sempre se encontra algo, mesmo em outros acervos. Por exemplo, há documentos do CIE nos acervos do SNI. Esses órgãos trocavam papéis freneticamente.

A aprovação da Lei de Acesso à Informação contemplando o fim do sigilo eterno será um passo muito importante e uma vitória da sociedade - que pressionou e está prestes a derrotar as posições retrógradas de Sarney e de Collor, adeptos da renovação indefinida do sigilo dos documentos ultrassecretos. Mas precisamos avançar. Aqui, mais uma vez, esbarramos na instituição mais frágil da democracia brasileira: o Congresso Nacional. Além da garantia de acesso às informações, é preciso que parlamentares acompanhem, como em outros países, a produção de decisões e documentos "sensíveis". Não se trata de divulgar o conteúdo das decisões, mas de saber, por exemplo, a quantidade de documentos ultrassecretos produzidos em um dado ano.

Por isso, não tenho muita esperança em relação à divulgação de papéis mais críticos, isto é, os documentos secretos e ultrassecretos. Como, no Brasil, ainda não temos um efetivo controle civil sobre as Forças Armadas, a decisão sobre abrir ou não os arquivos depende dos comandantes militares, independentemente do que disser a nova Lei de Acesso à Informação. Nesse sentido, a declaração de Jobim fragiliza a necessária supremacia do poder civil sobre os militares.

Segredos não tão remotos

Alguns importantes documentos da história do Brasil permanecem guardados a sete chaves nos arquivos do Itamaraty, seja no Rio de Janeiro, seja em Brasília, por receio de que seu conteúdo possa arranhar a história do país e abrir supostas feridas já cicatrizadas pelo tempo. Em meio a um acervo rico e variado, de notável valor histórico, muito se diz sobre documentos ultrassecretos referentes à Guerra do Paraguai e às negociações em torno da aquisição do Acre durante a gestão do Barão do Rio Branco, documentos esses sempre citados e que poderiam comprometer seriamente a imagem de figuras ilustres da nossa história e, mesmo, da nossa tradicional diplomacia, sobretudo perante os vizinhos. Mas muito disso não passa, efetivamente, de lenda, de um verdadeiro mito criado justamente para justificar o sigilo eterno e absoluto de parte importante da história brasileira.

Em termos de segredos, esses são muito mais intensos quando olhamos para o período mais recente de nossa história do que para o passado remoto das definições de limites e de conflitos no século 19. Pouca gente sabe, por exemplo, que o Itamaraty, durante o período militar, criou um serviço de informações que atuava em estreita sintonia com o Serviço Nacional de Informações, o SNI. Assim, em 1966, criado e dirigido por diplomatas, o Centro de Informações do Exterior entrou em operação. Sua principal função era espionar os exilados brasileiros e dotar o sistema repressivo de informações sobre qualquer atividade política levada a efeito contra a ditadura no exterior. O Ciex produziu mais de 8 mil informes, todos sigilosos e devidamente tratados como segredo de Estado. Esses documentos permanecem até hoje afastados do conhecimento público, ou seja, ainda não fazem, oficialmente, parte da história recente do Brasil.

O acervo documental que está sob a guarda do Itamaraty se encontra dividido entre o Rio de Janeiro e Brasília. No Rio, onde se localiza o Arquivo Histórico, encontram-se as coleções documentais mais antigas, que compreendem os papéis colecionados do início do século 19 até os anos 1950. O acervo do Rio conta, também, com documentos ainda mais antigos, que remontam à época do Brasil Colônia. Além disso, naquela unidade estão guardadas as coleções de arquivos particulares adquiridos por compra ou doação como, por exemplo, o arquivo pessoal do Barão do Rio Branco. Documentos citados como "sensíveis" pelo ex-presidente Sarney estão lá.

Em 1972, com a transferência do Ministério das Relações Exteriores para a nova capital, parte da documentação produzida pelo Itamaraty foi deslocada para Brasília. Assim, foi criado um segundo arquivo, então denominado Arquivo do Ministério das Relações Exteriores, abrigando em seu acervo a documentação mais recente. Uma peculiaridade do Itamaraty é que, mais do que qualquer outro ministério, ele próprio é uma grande central produtora de informações. Abastecido frequentemente por ofícios, telegramas, cartas-telegramas, relatórios e outros documentos remetidos pelas representações no exterior, foi-se criando aos poucos um acervo fantástico que contempla diversos assuntos relacionados à inserção internacional do País em suas múltiplas vertentes.

Um dos grandes problemas desses arquivos é a dificuldade de acesso aos seus acervos. Inexiste uma política clara e transparente quando qualquer cidadão solicita autorização para pesquisar, seja ele um estudante de pós-graduação, um historiador, um jornalista ou qualquer pessoa que queira, por qualquer razão, obter informações diretamente das fontes primárias.

A dificuldade aumenta à medida que nos aproximamos do tempo presente. No Rio de Janeiro, embora o acesso seja menos complicado, há o problema de que muitos documentos, mesmo referentes ao século 19 e ao início do século 20, simplesmente não são entregues aos pesquisadores. Em Brasília, os empecilhos são ainda mais graves. Como não há um quadro de funcionários especializados que dê conta do arranjo, desclassificação e liberação de documentos, o cidadão fica, virtualmente, impedido de ter acesso a boa parte da documentação existente.

A atual discussão sobre documentos secretos, sigilo eterno e direito à informação tem um aspecto muito positivo que é o de permitir que a sociedade discuta seu passado, mas com as atenções voltadas para o presente e para o futuro, numa perspectiva republicana, na qual o direito à informação é um dos pré-requisitos básicos para o pleno exercício da cidadania. Nesse sentido, nada mais oportuno do que podermos conhecer mais a fundo como o Brasil se relacionou e se relaciona com outros países, povos e culturas.

Não há razão, além da tradição, para que o Itamaraty continue como guardião da parte considerada histórica de seus acervos. Melhor, mais transparente e mais republicano seria sua transferência para o Arquivo Nacional, onde os documentos diplomáticos seriam tratados por profissionais qualificados e disponibilizados sem os descabidos receios motivados pela gestão corporativa.

Fonte: Estadão via Notinp
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