domingo, 14 de junho de 2020

Como funcionam os processos de compras de equipamentos militares?


Um comentário muito comum quando há um processo de compra de equipamentos militares é "por que escolheram o sistema x, se o sistema y é melhor em abc?"

Essa pergunta realmente não é fácil de responder. Neste artigo, vamos explicar, de maneira simplificada, alguns aspectos de ordem técnica dos processos de compras de equipamentos militares. Alertamos que cada etapa envolve a geração de várias centenas de documentos técnicos e pode levar meses ou anos.




Vamos deixar de fora aspectos eminentemente políticos, pois muitas vezes são até contrários aos quesitos militares. Tais aspectos, muitas vezes, acabam forçando as FFAA (Forças Armadas) a comprarem equipamentos que não são o que prefeririam.

Os termos são os utilizados principalmente nos EUA, mas os detalhes gerais são mais ou menos os mesmos em outros países. Digamos, por exemplo, que a USAF precisa resolver uma determinada necessidade, e um estudo inicial conclua que não há no seu inventário que atenda a esta necessidade.


MSA (ANÁLISE DE SOLUÇÕES MATERIAIS)

O primeiro ciclo é a MSA (análise de soluções materiais), em que as 'alternativas' - sistemas já em uso, preferencialmente no próprio país ou 'de prateleira' (já disponíveis no mercado, ou seja, plenamente desenvolvidos). Uma das principais fases da MSA é a AOA (análise de alternativas)

Caso o processo de MSA encontre uma solução 'boa o bastante', ou seja, cujo custo-benefício seja considerado adequado, o novo sistema é adquirido e o processo é concluído.

Exemplo prático: quando a USAF estava desenvolvendo uma variante armada do 'drone' (ARP / aeronave remotamente pilotada / VANT / UAV / RPA) General Atomics RQ-1 Predator, concluiu que não dispunha de PGM (munições guiadas de precisão, 'armas inteligentes') pequenas e leves o bastante para a missão.

Uma AOA encontrou a solução no míssil Lockheed Martin AGM-114 Hellfire, que já estava em serviço no US Army (Exército dos EUA) e no USMC (Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA).

Mísseis Helfire (verdes) sob as asas de um drone MQ-1 Predator

Caso o ciclo MSA não encontre soluções satisfatórias, inicia-se a etapa MDD (decisão de desenvolvimento de material), em que se decide pela aquisição ou desenvolvimento de um sistema inexistente nas FFAA (Forças Armadas). Caso a MDD realmente confirme a necessidade de desenvolvimento de material, parte-se para o próximo ciclo.


TMRR (processo de redução de riscos tecnológicos)

O próximo ciclo é um conjunto de estudos técnicos detalhados, o TMRR (maturação e redução de riscos tecnológicos). Um de seus estágios principais é o RFI (estudo de requisição de informações), em que se pede informações a instituições e indústrias de Defesa. Tais informações geralmente incluem o 'estado da arte' atual e estudos avançados das tecnologias disponíveis ou em desenvolvimento, e geralmente serve como ponto de partida para o próximo estágio, o RFP (pedido de propostas).

O RFP é o que a mídia não especializada geralmente se chama de 'competição'. No RFP, pedidos formais, que incluem os KPP (parâmetros essenciais de performance), critérios específicos de performance - requisitos de alcance, velocidade, carga de armas, etc - são definidos com valores objective (desejável) e treshold (mínimo aceitável).

Cópias do RFP são enviadas para indústrias da Defesa, as empresas interessadas devem emitir propostas preliminares, com cálculos técnicos e contábeis muito detalhados, dentro do prazo detalhado.

No caso de alguns países, como os EUA, empresas estrangeiras precisam formalizar parcerias com empresas nacionais. Objetivos de ToT (transferência de tecnologia), quando existentes, também são especificadas nessa etapa.

Após uma análise das propostas, é feita uma shortlist, uma lista com as propostas consideradas mais adequadas, e os proponentes da shortlist devem então fazer propostas mais detalhadas, que podem incluir a construção de protótipos, e que geralmente incluem demonstrações do uso dos sistemas, com flyoffs, voos dos sistemas para comprovar que atendem às especificações do RFP.

Dependendo da competição, os concorrentes podem ou não ser autorizados a modificar suas propostas, mas geralmente chega o momento da BAFO (proposta melhor e final), que não pode ser modificada.

Finalmente, as BAFO dos concorrentes são analisadas, e aquela que atende melhor aos KPP é escolhida.

Lembramos que, com grande frequência, critérios 'não técnicos' são considerados, como apoiar um concorrente cuja situação financeira esteja difícil, ou incluir outros fabricantes para atender a critérios políticos, mas tais critérios não serão analisados neste artigo.

Um exemplo recente foi o Programa T-X, em que várias empresas ofereceram treinadores para a USAF, com o objetivo de substituir o Northrop T-38 Talon, 'parente' do nosso querido Northrop F-5. O vencedor foi o projeto da Saab com a Boeing, que sequer existia quando o RFP foi feito. Foi batizado T-7 Red Hawk, uma homenagem aos Tuskegee Airmen, o famoso 'Esquadrão Caudas Vermelhas' da Segunda Guerra Mundial

O Saab Boeing T-7 Red Hawk (esquerda) substituirá o Northrop T-38 Talon (direita) na USAF


EMD (DESENVOLVIMENTO DE ENGENHARIA E MANUFATURA)

Que o vencedor do ciclo TMRR é escolhido, o próximo ciclo é o EMD (desenvolvimento de engenharia e manufatura), em que o sistema da BAFO passa por análises bem mais detalhadas, que podem incluir até mesmo usos limitados em combate.

Via de regra, o EMD acaba por revelar problemas não detectados durante os testes iniciais, o que leva a alterações no design. Este processo pode se repetir várias vezes, até que se chegue a um design considerado satisfatório.

Esse design passa por um processo detalhado de revisão, a CDR (revisão crítica do design), em que o design é 'congelado', ou seja, não deve passar por alterações significativas.

O Boeing KC-46 passou pela CDR em 2013: USAF conclui revisão de projeto do KC-46 Tanker

Há situações em que é necessário mudar o design após a CDR, mas isso geralmente causa atrasos significativos no processo.

Uma vez que o ciclo EMD é concluído, parte-se para o próximo ciclo.


PD (PRODUÇÃO & DESENVOLVIMENTO)

O objetivo principal do ciclo EMD é preparar o sistema para a fase PD (produção e desenvolvimento), em que o sistema entra na fase LRIP (produção inicial em baixa escala). Neste ciclo, os sistemas já são entregues para uso pela USAF.

Durante a LRIP, a produção da aeronave ocorre num ritmo relativamente baixo, e os testes operacionais se tornam ainda mais detalhados. Testes em combate são geralmente realizados nesta etapa.

Os testes realizados nesta fase tornam-se ainda mais aprofundados quando a aeronave atinge a etapa IOC (condição operacional inicial), em que há aeronaves suficientes para testes operacionais em pequena escala.

Caso os testes ocorram bem na etapa LRIP / IOC, toma-se a decisão de elevar o sistema a FRP (produção em larga escala), em que  taxa de produção segue o ritmo definitivo estipulado nos ciclos anteriores.

O nosso Embraer KC-390 Millennium encontra-se nesta fase do ciclo.

Embraer KC-390 Millennium


FOC (CAPACIDADE OPERACIONAL PLENA)

O Lockheed Martin F-22 Raptor atingiu a FOC em dezembro de 2007












Uma aeronave atinge FOC (capacidade operacional plena) quando a FRP consegue produzir aeronaves suficientes para equipar um determinado número de esquadrões.

A partir deste momento, o sistema é declarado operacional, e segue as atividades normais da USAF.



CONCLUSÃO

Essas etapas podem demorar bastante tempo - por exemplo, o Su-57 teve a MDD em 1979, ainda na época da URSS, mas eventos 'cataclísmicos' como a própria dissolução da URSS atrasaram bastante o processo.

O Su-57 ainda não atingiu a etapa LRIP. Pelo planejamento russo, a LRIP deveria começar ainda em 2020, mas com a pandemia de coronavírus é provável que haja novos atrasos.

Apontamos esse fato não como demérito à Rússia, mas para ilustrar que não é um processo tão simples como ir numa loja e comprar um smartphone - é um processo bastante demorado, caro, complexo e que envolve vários aspectos de ordem técnica e não-técnica, o que pode fazer com que demorem vários anos.

Houve diversos projetos cancelados em cada uma das etapas indicadas acima, um lembrete de que nada é garantido, mesmo quando o sistema já atingiu etapas como FRP e FOC - o próprio F-22 teve sua produção cortada de 750 para 187.


Por Renato Marçal


REFERÊNCIAS:

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