
Grupos dizem que durante a ditadura guerrilheiros já foram julgados e punidos, ao contrário de Militares torturadores "Nenhum torturador ou estuprador que agiu nos porões respondeu pelos crimes de lesa-humanidade que cometeu", diz ex-preso
Entidades de direitos humanos rechaçam mudanças no plano
Entidades de defesa dos direitos humanos, contra a tortura e de familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura Militar (1964-1985) manifestaram-se contrariamente à modificação proposta no texto da diretriz 23 do Programa Nacional de Direitos Humanos. Pelo novo texto, seria suprimida referência à "repressão política" no quesito que prevê a apuração das violações dos direitos humanos.
Os Militares não se manifestaram após a divulgação das polêmicas envolvendo o plano.
"O novo texto deixa tudo em aberto. Violações de direitos humanos seriam apuradas tanto as cometidas por organizações da esquerda armada quanto pela repressão política. Como se fosse igual. E não é", diz Maria Amélia de Almeida Teles, integrante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
"Quem é o agente da repressão política que já foi punido por seus atos? Nenhum torturador ou estuprador que agiu nos porões da repressão respondeu pelos crimes de lesa-humanidade que cometeu", acusa o jornalista Alípio Freire, da extinta organização Ala Vermelha, preso durante "5 anos, um mês, um dia e 18 horas", entre 1969 e 1974.
"Nós, sim, os militantes, fomos punidos. Muitas vezes. Fomos sequestrados, levados para cárceres clandestinos [dos quais muitos desapareceram], mantidos incomunicáveis, presos, torturados, mortos, condenados, forçados ao exílio", diz Alípio Freire.
A acusação contra Freire era a de "tentativa de tomada do poder", de "guerra subversiva, psicológica e adversa", de "ação armada", conforme tipificado pela Lei de Segurança Nacional, a temida LSN. Condenado a dez anos na Auditoria Militar de São Paulo, posteriormente, o próprio Superior Tribunal Militar revisou a sentença, reduzindo-a para seis anos. "Fiquei preso dois anos a mais do que eles mesmos -e suas leis de exceção- julgaram que eu devia. Com três anos, teria direito a sair", lembra.
"Os militantes contra a ditadura já foram punidos, inclusive à luz da legislação do regime ditatorial existente na época no Brasil. O que é preciso fazer, até porque nunca foi feito antes, é apurar as responsabilidades daqueles que, de dentro do Estado, torturaram e mataram", afirma Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo.
"Esta é a segunda tentativa do ministro Nelson Jobim de ganhar no tapetão", afirma Zelic. "Na 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 2008, os membros da pasta da Defesa já tinham tentado mudar o caráter da comissão nacional de verdade e justiça, propondo que ela se chamasse comissão da verdade e reconciliação. Perderam. Agora, de novo, tentam esvaziar o plano."
Governo pode reeditar plano sem referência a torturadores
O governo articula uma solução de meio termo para a questão nevrálgica do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos: em vez de acrescentar ao texto do programa a investigação da esquerda armada durante a ditadura Militar (1964-1985), como querem as Forças Armadas, seria suprimida a referência à "repressão política" na diretriz 23, que cria a comissão da verdade.
Ou seja, a questão seria resolvida semanticamente, sem especificar a apuração de excessos de nenhum dos dois lados. O texto passaria a prever a apuração da violação aos direitos humanos durante a ditadura, genericamente, sem especificar de quem e de que lado.
Essa proposta está sendo colocada pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, e poderá ser aceita pelo ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que aposta numa "solução de meio termo".
Jobim não aceita uma comissão unilateral, focada apenas na apuração das violações praticadas pelos Militares. E Vannuchi não admite a investigação da esquerda armada. Sem referência aos dois lados, a questão poderá ser resolvida pelo Congresso Nacional.
O plano foi formalizado como decreto presidencial, prevendo a formação de um grupo de trabalho do Executivo para elaborar um projeto de lei ao Congresso, criando a comissão da verdade. Com o decreto revisado, se houver o acordo, o projeto ficaria mais flexível para o debate parlamentar.
O presidente Lula volta de férias e começa o ano de trabalho hoje entre esses dois fogos: o de um amplo setor da sociedade, liderado por Jobim, que quer a revisão do plano, e o de juristas e familiares de desaparecidos políticos, que respaldam Vannuchi e não aceitam alterações significativas.
No confronto, os dois lados ameaçam com pedidos de demissão justamente num ano de campanha eleitoral, em que Lula pretende somar apoios para a sua candidata ao Planalto, a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil). Ex-militante da esquerda armada, torturada e presa durante a ditadura Militar, ela é parte diretamente interessada no plano.
Vannuchi não abre mão de exigir "uma narrativa sincera, honesta e humilde do Estado brasileiro sobre as circunstâncias dos desaparecimentos e o local onde os corpos estão".
"O país não tem o direito de saber toda a história que envolve Rubens Paiva, Vladimir Herzog, Honestino Guimarães? Sem isso, como é possível virar a página? Eles, aliás, foram torturados, mortos e nem sequer eram da esquerda armada."
O ministro de Direitos Humanos tem respaldo, por exemplo, da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e do "Manifesto Contra a Anistia aos Torturadores", reunindo mais de 10 mil assinaturas em diferentes setores da sociedade civil em todo o país.
O ponto central do manifesto, porém, é uma questão que, segundo tanto Jobim quanto Vannuchi, não está colocada no plano: a revisão da Lei da Anistia, de 1979, que valeu para os dois lados, tanto para os Militares e civis responsáveis pela repressão quanto para os militantes de esquerda.
Na versão dos dois ministros, o item 2 da diretriz 23 já faz referência à lei (citada pelo número, não pelo nome), o que caracteriza o reconhecimento de sua legitimidade.
Além da polêmica com a área Militar, o plano também provoca críticas de outros setores. A Igreja Católica reagiu contra a descriminalização do aborto. O setor ruralista, apoiado pelo ministro Reinhold Stephanes (Agricultura), considera o plano "preconceituoso contra o agronegócio". As entidades de imprensa acusam um ataque à liberdade de expressão.
Vannuchi lamentou a posição crítica do PSDB e do DEM, alegando que o atual plano segue e aprofunda os dois primeiros planos, ambos elaborados no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1999 e 1999-2003).
OAB apóia Vannuchi e sugere demissão de Jobim
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou hoje (10) uma manifestação de apoio ao terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos e ao secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi, que ameaça deixar o cargo caso o documento apresentado no dia 21 de dezembro sofra alguma alteração .
Na mensagem divulgada pela assessoria da entidade, o presidente da OAB, Cezar Britto, afirma que quem “censurou, prendeu sem ordem judicial, cassou mandatos e apoiou a ditadura militar” (1964/1985) foi anistiado pela lei promulgada em 1979, mas que quem cometeu torturou cometeu crimes de lesa-humanidade e, portanto, deve ser punido pelo Estado conforme estabelece a Constituição.
Ainda de acordo com a mensagem, Britto ligou para Vannuchi a fim de se solidarizar com “sua luta pelo estabelecimento do direito à memória e à verdade”. Durante a conversa por telefone, Britto reforçou sua opinião pessoal de que a Lei da Anistia, de 1979, não implica no “esquecimento” dos fatos ocorridos durante o regime de exceção.
"Todo brasileiro tem o direito de saber que um presidente da República constitucionalmente eleito foi afastado por força de um golpe militar. Da mesma forma, não se pode esquecer que no Brasil o Congresso Nacional foi fechado por força de tanques e que juízes e ministros do Supremo Tribunal Federal foram afastados dos seus cargos por atos de força, e que havia censura, tortura e castração de todo o tipo de liberdade", diz Britto. “O regime do medo que sustentava o passado não pode servir de desculpa no presente democrático. Um país que tem medo de sua história, não pode ser considerado um país sério".
O diretório da OAB no Rio de Janeiro também divulgou nota em que seu presidente, Wadih Damous, critica duramente ao ministro da Defesa, Nelson Jobim. No final de 2009, Jobim e os comandantes das Forças Armadas colocaram seus cargos à disposição por serem contrários à criação da chamado Comissão da Verdade, instância que ficaria responsável por investigar os atos cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar, com a possibilidade de que oficiais militares sejam punidos por crimes cometidos à época.
"Se é para haver demissões no governo que sejam as primeiras a do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e dos chefes militares". Para Damous, setores historicamente ligados ao golpe de 1964 estão tentando criar uma crise artificial no país, distorcendo deliberadamente o conteúdo do programa.
Outros integrantes do governo, como o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, também criticam o programa, que também prevê medidas polêmicas relacionadas ao agronegócio, meio ambiente, comunicação, ciência e na relação do Estado com a Igreja. "É inaceitável que a sociedade brasileira volte a ser tutelada por chefes militares", afirmou Damous, ressaltando que Vannuchi merece a integral solidariedade de todos aqueles que não querem ver o retrocesso da democracia brasileira.
Fonte: Folha / Jornal de Brasília

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