domingo, 3 de janeiro de 2010

O ajuste de contas, Comissão da Verdade


Talvez o governo tenha força para alavancar a Comissão da Verdade nos termos dele. Mas não tem como circunscrever o debate

A Constituição brasileira tem coisas questionáveis. O inciso 43, do artigo 5º dos direitos e garantias fundamentais, lista os crimes que não podem ser anistiados. Entre eles a tortura e o terrorismo. E mais todos que a lei definir como hediondos.
Vamos começar pelo terrorismo. Num país hipotético, um grupo de militantes decide que o terror é o único instrumento capaz de levar à derrubada do governo e a implantar um novo regime. Certo dia, resolvem explodir um shopping center. Até que um deles, mais prudente, traz a dúvida.

- Não sei se explodir o shopping é uma boa.

- Por quê?

- Porque a Constituição diz que o terrorismo não é passível de graça ou anistia. Se um dia formos presos e condenados, vamos ter que cumprir a pena.
Onde está o absurdo? Se alguém considera o terror um instrumento legítimo para buscar outra ordem constitucional, não deixará de praticá-lo simplesmente porque a atual Constituição proíbe a anistia de quem adota o terror como meio de luta pelo poder.

Pior, ao definir crimes não anistiáveis, a Constituição retira do Estado um instrumento importantíssimo para promover a pacificação política. Se o governo do Reino Unido estivesse legalmente proibido de celebrar determinados acordos e fazer concessões, não teria obtido o fim das atividades militares do Exército Republicano Irlandês (IRA). Se a Espanha não puder fazer ofertas políticas ao ETA (Pátria Basca e Liberdade), nunca haverá paz ali.

Agora mesmo, Israel e o Hamas negociam uma troca. Se der certo, o grupo islâmico devolverá um soldado sequestrado e os israelenses libertarão centenas de prisioneiros, inclusive condenados por ações violentas. Felizmente, a lei ali não proíbe que o governo faça esse tipo de coisa. Há sérias resistências em Israel a um entendimento com o Hamas, e se houvesse impedimento legal irremovível não haveria como fazer.

Por que o Brasil introduziu um contrassenso assim na Carta? Não foi por nenhuma razão prática. Obedeceu apenas à luta política. Com o país recém-saído da ditadura, a esquerda quis incluir na Constituição a condenação da tortura. E a direita, para empatar o jogo, incluiu também a condenação do terrorismo.
Na tortura vale a mesma lógica. A Constituição diz que ela não pode ser anistiada. Mas se houver ruptura da ordem legal o dispositivo torna-se inócuo. Claro que há os casos de tortura não politicamente motivados. Um exemplo são os maus-tratos a presos comuns no sistema carcerário. Só que o inciso constitucional não foi feito para isso. A razão foi política.

Daí que os debates sobre o tema devam ser acompanhados com certa cautela. No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, por sinal, quem se bate para levar os torturadores da ditadura ao banco dos réus são coincidentemente os mesmos que lutam para o Brasil não devolver Cesare Battisti à Itália, que o condenou por terrorismo.
Se um dia a Colômbia celebrar um acordo de paz com as Farc, é 100% certo que os mesmos aplaudirão uma possível anistia dos guerrilheiros, inclusive dos que sequestraram e mantiveram em cativeiro na selva gente que nada tinha a ver com a guerra.

Eis outra dúvida: sequestrar alguém e mantê-lo longe da família por um longo período, por anos, não pode também ser considerado suficientemente grave? Não é uma maneira de infligir deliberadamente sofrimento físico e mental, ao sequestrado e a sua família, para atingir objetivos políticos?
O governo federal decidiu impulsionar uma Comissão da Verdade, para revolver o passado e fazer o ajuste de contas. Em tese, é para que certos crimes contra os direitos humanos não mais se repitam. Como visto, a tese é duvidosa em si.
Talvez o governo tenha mesmo força para, a despeito da resistência militar, alavancar a iniciativa do jeito que deseja. Lula está no ápice do poder e tem bala na agulha. Mas ele não tem como controlar, ou circunscrever, o debate que a comissão vai gerar na sociedade.


Silêncio

Quando a chuva alagou São Paulo dias atrás, o PT cumpriu sua obrigação e foi para cima do governador José Serra (PSDB) e do prefeito Gilberto Kassab (DEM). E o partido recolhe parte do mérito pelo fato de os governos estadual e municipal terem se mexido, tomado algumas providências para resolver, ao menos parcialmente, o problema da população cujas casas e ruas foram tomadas pela água.
Já no Rio de Janeiro, onde o governador Sérgio Cabral (PMDB) é aliado de Lula e governa com o PT, o partido está em silêncio, escondido, ainda que a contabilidade das vítimas seja bem maior. Cabral é hoje quase um inimputável político, pelas abrangentes relações partidárias e governamentais. É péssimo para os cidadãos. Quando o sujeito governa sem oposição, sempre quem perde é o povo.
Aliás, quando não há oposição o governante também perde. Só que ele demora mais para perceber.


Fonte: Correio Braziliense

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